
Primeiros representantes da comunidade Tabom chegaram a Gana em 1836| Crédito: Pedro Stropasolas/Brasil de Fato
A comunidade Tabom estabeleceu-se em Accra em 1836, após a Revolta dos Malês
Reportagem do Brasil de Fato
Em frente ao porto onde seus antepassados desembarcaram, Roland Boye reflete sobre a origem de seu povo. Ele pertence à sexta geração entre os tabons, descendentes de ex-escravizados libertos em solo brasileiro que retornaram a Gana, na costa oeste africana, em um fluxo intensificado após a Revolta dos Malês, em 1835, na Bahia.
“Temos orgulho da nossa história. É triste que tenham levado nossos tataravós como escravos, mas, no fim, eles voltaram vitoriosos, com muitas habilidades e conhecimentos para ensinar ao povo de Gana“, celebra Boye.
Assim como os agudás, no Benin e no Togo, e os amarôs, na Nigéria, os tabons integram o grupo de cerca de três a oito mil afro-brasileiros que retornaram à África a partir do fim do século 18. Deste retorno, forçado ou voluntário, surgiram comunidades que sobrevivem até hoje mantendo tradições trazidas do Brasil. Esta é a primeira reportagem de uma série especial do Bem Viver, programa do Brasil de Fato, sobre esta herança cultural.
Inicialmente, os primeiros grupos de retornados que chegaram ao continente africano foram enviados pelo Império para a tutela de traficantes de escravizados ou pessoas envolvidas nesse comércio, como o luso-brasileiro Francisco Félix de Souza, o primeiro entre os Chachás, que desembarcou em Uidá, no Benin, entre 1788 e 1792.
A partir de meados dos anos 1830, porém, os retornos se intensificaram e passaram a estar relacionados diretamente às rebeliões populares do Brasil Império, principalmente com embarcações saindo da Bahia.
Boa parte dos primeiros tabons pertencia à etnia muçulmana hauçá e, segundo relatos, pode ter sido enviada de volta à força, como consequência de sua participação na Revolta dos Malês. A rebelião levou cerca 600 de negros escravizados e libertos as ruas de Salvador, no dia 24 de janeiro de 1835, com o objetivo de derrubar o regime escravagista e encerrar a imposição da fé cristã.
No período, voltar à África seja de modo voluntário, ou forçado, como revoltosos deportados, se tornou corriqueiro. Entre 1835 e 1837, dados compilados pela pesquisadora Mônica Lima e Souza levantam um contingente de 993 retornados, o período com maior incidência de retornos.
Quem não foi enviado à força por participar da maior revolta de escravizados da história brasileira, cerca de 200 pessoas, deixou a Bahia para escapar da perseguição e do racismo, pois para o Império, os negros libertos nascidos no Brasil eram vistos como potenciais articuladores de novas revoltas.
Entre as medidas legais adotadas pelo poder colonial nos anos seguintes à insurreição, esteve a aprovação de leis que previam a deportação de pessoas negras que supostamente “perturbavam a ordem pública”. Na Bahia, palco da revolta, leis provinciais proibiam também a aquisição de casas por parte de negros libertos, impedidos ainda de alugarem imóveis sem a autorização de juízes.
“As primeiras pessoas que vieram da Bahia chegaram em 1836. O porto era a entrada da cidade. Quando chegaram, foram ver o chefe local, da família real Mantse Nii Kwaku Ankrah, que lhes deu um pedaço de terra. Essa área é conhecida hoje como Brazil Lane, porque foram os afro-brasileiros da diáspora que construíram as casas nessa rua”, relembra Boye.

A chegada em Gana
Ao chegarem, os retornados de Gana foram recebidos pelo povo Ga, que habitavam a região costeira de Gana. Segundo a tradição oral, por não entenderem a língua nativa e responderem “tá bom” a qualquer diálogo, os ga começaram a chamar os recém chegados de tabons.
Os múltiplos talentos trazidos do Brasil foi o que motivou o chefe Ga, Mantse Nii Kwaku Ankrah, a ver com bons olhos a chegada dos imigrantes. Foi Azumah Nelson, mais tarde conhecido como Nii Azumah I, o primeiro chefe Tabom, quem assumiu a responsabilidade de distribuir as terras no bairro de Jamestown, um dos mais antigos e povoados de Acra.
Nas proximidades do Fort James, erguido em 1673 pela Royal African Company como um dos principais entrepostos britânicos para o comércio de ouro e pessoas escravizadas, os tabons ergueram as primeiras casas de pedra, entre elas o sobrado histórico conhecido como Casa Brasil, erguido em 1837. Ao redor dela, a comunidade de espalhou.
“De acordo com a história, eles sabiam que eram de Gana. Seus pais e bisavós haviam sido levados como escravos, mas agora estavam livres. Por isso quiseram voltar para ver de onde vieram seus antepassados. E quando chegaram, foram muito bem recebidos em Gana, acolhidos em Accra. Sabiam que eram ganeses, mas não conheciam sua localidade de origem, então se estabeleceram em Accra. Hoje, celebramos os festivais com o povo Ga, compartilhamos sua cultura. Somos metade Ga, metade brasileiros”, explica Boye.
A presença do povo Tabom transformou a capital de Gana com novas técnicas de construção, irrigação e, sobretudo, o ofício da alfaiataria.
“O primeiro presidente de Gana e líder da independência, Kwame Nkrumah, era próximo da família Tabom. Lutamos não apenas ao lado de Nkrumah, mas também pelo povo de Accra”, conta Roland.

Ao longo do século 19, a comunidade Tabom cresceu com novas chegadas de afro-brasileiros, muitos deles ex-escravizados alforriados ou libertos que buscavam, em Gana, a chance de construir a vida que o Brasil escravista lhes negava.
Sobrenomes como Ribeiro, Lima, Moura, Vieira, Da Costa e Peregrino se tornaram comuns entre os tabons. Comidas como a feijoada, o cozido, e o acalalá começaram a ser apreciadas. Este último é uma iguaria similar ao acarajé baiano, mas sem o vatapá, o caruru, e outro recheios.
No livro Os Retornados, o autor Carlos Fonseca conta que o crescimento da comunidade e a especulação em Accra foram, gradativamente, fazendo muitos membros da comunidade serem empurrados para zonas mais remotas da cidade, retomando o cultivo de culturas agrícolas que haviam aprendido no Brasil.
Roland Boye explica que os africanos que retornaram a Gana não formavam um grupo uniforme: vinham de diferentes etnias, falavam línguas diversas e praticavam crenças distintas. O que acabou lhes dando coesão foi justamente a experiência compartilhada no Brasil, fruto da vida coletiva nas senzalas e do acesso as tradições afro-brasileiras.
“Durante o período do tráfico de escravos, levaram muitos iorubás da Nigéria para a Bahia. E na Bahia, nigerianos, ganeses, togoleses e beninenses conviviam juntos, eram como um só povo. Eles se misturavam, faziam tudo juntos. Então, na Bahia, todas as tradições da África Ocidental eram praticadas. Eles falavam iorubá e criaram músicas e costumes nessa língua”, coloca Boye.
Agbê: elo entre a África e o Brasil
Embora a língua portuguesa tenha praticamente sido perdida, os traços da presença brasileira seguem visíveis na culinária, na religião e, principalmente, na música.
O ritmo Agbê, de origem iorubá, é o cerne da identidade afro-brasileira que sobreviveu à travessia. Eric Morton, mestre percussionista intitulado Nii Kwashie II, é o guardião do Agbê entre os tabons.
Ele conta que antes de chegar a Gana, o povo Tabom permaneceu por cerca de 40 anos em Lagos, na Nigéria. Foi lá, segundo ele, que tiveram contato com o ritmo, incorporando-o à sua cultura.

“O Agbé é um elo entre o povo Tabom e o povo brasileiro. Nós estamos juntos. Dançamos juntos, fazemos tudo juntos. A única diferença é que as canções são cantadas em iorubá”, conta Morton.
Com mais de 40 anos de dedicação, ele foi o primeiro da comunidade a viajar à Bahia, em 2016, para reconectar-se com a história de seus antepassados. O mestre visitou terreiros de candomblé e integrou rodas de capoeira, além de acompanhar ensaios dos Filhos de Gandhy e do Olodum.
“Agbé não vem do Brasil. No Brasil eles têm o samba e a capoeira, mas eu enviei o Agbé para lá, para o mestre de capoeira Cobra Mansa ensinar aos percussionistas brasileiros. Nós levamos o Agbé ao Brasil e eu enviei para várias universidades, toquei lá, e conheci grandes músicos brasileiros que gostaram muito do ritmo”, revela.
A visita de Lula
Em 1961, o diplomata Raymundo de Souza Dantas foi enviado por Jânio Quadros para instalar a primeira embaixada brasileira na África pós-colonial. Ao chegarem no terreiro do povo Tabom, ele e sua esposa, Ideline Botelho Souza Dantas, foram recebidos ao som da antiga cantiga baiana Viva Iáiá, Viva Iáiá.
A visita de Dantas, o primeiro homem negro a representar oficialmente o Brasil no exterior, foi um marco para restabelecer os laços entre os retornados e sua terra ancestral.
Em 2005, Luiz Inácio Lula da Silva foi o primeiro chefe de Estado brasileiro a visitar o povo Tabom em Gana. Ele viajou acompanhado dos então ministros Gilberto Gil e Celso Amorim.

Durante a celebração organizada pelos tabons, Lula foi agraciado com um batakari de algodão branco finamente bordado, uma estola kente e sandálias, conjunto típico das homenagens prestadas aos chefes da comunidade. Eric Morton se lembra bem desse dia.
Na época, em consequência da visita de Lula, a Brazil House, ou Casa Brasil, o sobrado histórico construído pelos primeiros representantes da comunidade, foi restaurado e transformado em museu. Mas hoje o local já foi fechado, aguardando nova reforma.
“O presidente Lula esteve aqui. Cantei com ele e ele me disse que nunca tinha visto um africano cantar uma música brasileira antes. Disse: ‘Eric, você é a primeira pessoa que eu vejo cantar uma canção brasileira’. Cantamos aqui, neste mesmo terreiro”, conta.

Viva Iáiá
Dois tambores, um agogô e um xequerê formam a base rítmica do Agbê. Na roda, Eric Morton ecoa cantos responsoriais que evocam os orixás iorubanos. A música chama as matriarcas a dançarem passos que lembram o samba de roda do Recôncavo Baiano.
O culto a Xangô, orixá do trovão e da justiça, é um dos elementos mais preservados dessa diáspora. Com o Agbê, os tabons celebram nascimentos, batismos, casamentos e, sobretudo, a morte.
Uma das canções celebrativas e que ainda guardam versos em português é Viva Iáiá, Viva Iáiá como explica Eric Morton.
“Quando alguém morre, à meia-noite fazemos uma oração pelo corpo. Depois da oração, cantamos a música ‘Viva Iáiá, Viva Iáiá para o falecido. Colocamos uma cruz sobre sua cabeça, damos voltas em torno do corpo e então todos se afastam. Isso significa que o espírito está seguindo de volta para o Brasil, porque, quando morremos aqui, nosso corpo pode ficar, mas acreditamos que a alma retorna ao Brasil, já que somos brasileiros”, explica o mestre.

“Fazemos da morte uma celebração. É algo natural. Quando um tabom morre, realizamos essa cerimônia à meia-noite, com cantos e orações, como uma despedida”, completa.
Para o jovem Mahama Nelson, o legado de resistência de seu povo não morrerá com o passar dos anos. Todos que visitarem a rua brasileira na capital de Gana verão jovens como ele, desde cedo, sendo introduzidos ao Agbê, cultuando xangô e dançando ao som desse ritmo ancestral.
“Quando Eric me viu em um festival e disse: ‘Ah, você sabe tocar’. Eu disse que sim. Então, ele colocou o tambor na minha mão e agora estou tocando. Eles trouxeram os tambores, então eu preciso ajudar. Precisamos apoiar para que continue por muito tempo”, finaliza o jovem.