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Na luta e contra o boato | Crônicas & Contos do Caminho | Luiz Antônio Costa

Baile da União Operária em 1962, 32 anos depois da fundação | Imagem corrigida por IA | Rede Hoje

O frio de junho, seco e limpo do inverno mineiro, chegara com dedos de gelo; uma friagem úmida e rente ao chão, que subia pelas canelas dos homens e se instalava nas casas de adobe. Patrocínio inteira tremia, mas o tremor não era apenas físico. Um zunzum baixo e sibilante percorria as ruas de terra batida. Falava-se de uma União que estava prestes a nascer, mas que já chegava ao mundo manchada pelo rumor de conchavos feitos nas sombras, pelo boato venenoso de que a União Operária nasceria com uma proposta à Liga Operária visando uma fusão das duas associações.

Joaquim Carlos dos Santos — Quinquim, o professor, o futuro historiador — fechou a porta de sua sala com o cuidado de quem lida com algo frágil. Dentro, o silêncio era pesado, e o ar cheirava a papel antigo. Ele não era um homem do comício, mas das entrelinhas, das fontes primárias, da verdade que se sustenta em um documento. Aos quarenta e um anos, trazia no rosto magro e nos óculos a serena austeridade de quem passa a vida em diálogo com os registros.

Sua mão pousou sobre o esqueleto da União Operária: estatutos copiados e adaptados da Confederação Católica de Belo Horizonte, artigos sobre contribuições e deveres. Para ele, aquilo era a verdade concreta, um ato de fé. Mas o boato, aquele filho ilegítimo da palavra, não precisava de papel; ele nascia na boca e multiplicava-se no ouvido, nas ruas, ágil e incontrolável. Com um suspiro, ele pegou o sobretudo, lembrando-se da voz do pai, o professor Olímpio dos Santos: “Fato sem documento é lenda, Joaquim. E lenda é morada da mentira.”

A casa de Quinquim, naquela noite de quinta, era uma ilha de luz tremula. O lampião de querosene, pendurado sobre a mesa de jantar, deixava os rostos dos quatro homens que o aguardavam emergirem da penumbra: José Caldeira, Chico Estevão, Demócrito França e Odorico Pimentel. O silêncio era espesso, quebrado apenas pelo chiar do pavio. Foi Zé quem rompeu a tensão, a voz rouca:

— É verdade, então, Joaquim? O povo fala que já está tudo acertado com a Liga, que a fusão é certa.

Quinquim não respondeu com a palavra. Levantou-se e voltou com a pasta de couro manchada. O gesto foi lento, intencional. Abriu-a sobre a mesa e, junto aos estatutos, colocou a edição daquele dia do jornal “Cidade de Patrocínio” com o desmentido publicado em letras garrafais na capa.

— Esta — disse, com a voz baixa e clara do professor que explica uma lição difícil — é a única verdade que temos até agora. O estatuto. O que vocês trouxeram? Que documentos, que provas, que fontes primárias sustentam esse rumor que está apodrecendo o nome da nossa luta antes mesmo de ela nascer?

Demócrito pigarreou, desconfortável: — Quinquim, ninguém anda com documento de boato no bolso. O povo sente, ouve, repete.

— Exatamente! — a palavra de Quinquim foi um estalo seco. — E a cada repetição, a mentira ganha um anel de verdade. Daqui a pouco, a mentira é a árvore. E nós ficamos aqui, tentando derrubar um eucalipto com as mãos nuas. — Ele limpou os óculos. — Meu pai me ensinou que contra lenda, documento. Nós não vamos à assembleia para negar uma fofoca. Vamos para apresentar um fato. Este!!! E apontou para os papéis.

Odorico, que observava as chamas no fogão, concordou: — O homem tem razão. O povo tem medo do que não vê, do que não pega. Você mostra um papel, com assinatura, carimbo, data… o medo diminui. A dúvida some.

A angústia começou a se transformar em plano. A influência de Quinquim não estava em discursos inflamados, mas na metodologia. Enquanto a cidade ardia com o fogo rápido da fofoca, ele oferecia a lenta e duradoura alvenaria do registro.

Ele desenhou o roteiro ali mesmo: a assembleia no Ginásio Dom Lustosa seria uma sessão solene, com livro de presenças, ata minuciosa, leitura pausada de cada artigo. E no final, a declaração clara, inserida na própria ata: que nenhuma proposta fora feita à Liga Operária visando uma fusão e que o boato era falso.

— Assim — concluiu Quinquim, com um brilho febril nos olhos — quando daqui a cinquenta anos um neto de um de nós quiser saber como nasceu esta União, ele não vai ouvir ‘me disseram’. Ele vai poder ler. A verdade será um objeto. Alguém poderá pegar nela.

O frio lá fora parecia ter recuado. O pacto foi selado com o som seco de canetas tinteiro sendo carregadas e a letra cursiva de Quinquim preenchendo a primeira página do livro de atas.

Na noite de 8 de setembro de 1930, o salão do Ginásio Dom Lustosa estava cheio do calor de centenas de homens que trabalhavam com as mãos. No palco, a mesa tosca e a pasta de couro de Quinquim.

A assembleia seguiu o roteiro meticuloso. Quando Odorico se levantou para enfrentar o boato, segurava nas mãos uma cópia do estatuto e a ata da reunião fundadora. — Há quem diga — sua voz grave varreu o silêncio — que esta União já nasce com dono. Que já houve acerto. Pois bem. Aqui está o nosso nascimento. Registrado. Assinado. Cada artigo, cada vírgula. E registrado também está, na ata da reunião fundadora. Quem disser o contrário, que venha aqui agora e apresente sua prova.

O silêncio que se seguiu foi o som do boato sendo desarmado pela autoridade fria do documento. Era a lenda sendo desalojada pelo fato. Joaquim Carlos dos Santos, de pé nos fundos, não sorria. Havia uma serenidade profunda. Ele estava arquivando o nascimento.

E assim a União Operária de Patrocínio, o primeiro clube de trabalhadores negros da região, fincou seus alicerces. Não apenas na coragem, mas na letra cursiva de um professor que acreditava que o futuro mais digno só poderia ser construído sobre uma verdade sólida e verificável.

A primeira diretoria da União Operária, fundamental para a consolidação da entidade e a superação dos primeiros desafios, foi composta por Joaquim Carlos dos Santos, que assumiu a presidência; José Caldeira Machado foi o vice-presidente; Francisco Estevam Arantes ficou com a tesouraria; e os postos de secretaria foram ocupados por Demócrito França (1º secretário) e Odorico Pimentel (2º secretário), selando o pacto dos fundadores.

Mais tarde, no final de 1930 e início de 1931, a União Operária expandiria sua atuação para além da assistência e da sociabilidade, mantendo uma escola noturna. A escola era dedicada aos trabalhadores e contava com noventa e seis alunos matriculados, sob a direção do professor Telésforo de Melo Ribeiro. Além disso, a União Operária também estabeleceu uma banda de música própria, cuja regência ficou a cargo do maestro José Carlos da Piedade, autor da composição “Saudades do Matão”, uma música que atravessou décadas e se tornou um sucesso em nível nacional.

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Esta é uma obra de ficção baseada em fatos reais e na história oral contada ao longo do tempo, mas com licença poética e livre criação. Este conto faz parte do livro inédito Crônicas e Contos do Caminho.

Baile na União Operária do dia 30 de abril de 1962, 32 anos depois da inauguração | Fotos reais: acervo da Rede Hoje

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