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Traição em Lagoa Seca | Memórias de um delegado de Polícia

Há crimes que não me abandonam. Não porque tenham sido complexos, mas porque foram simples demais. O de Jonas Sardinha, por exemplo, ainda me visita em noites de chuva fina, dessas que fazem Quebranzol parecer uma cidade à deriva.

Lembro-me bem de Lagoa Seca naquela noite. O bairro sempre teve um jeito de conter a respiração quando algo ruim acontecia, como se as casas soubessem antes das pessoas. A quadra abandonada, iluminada por um poste cansado, parecia um palco mal ensaiado para a tragédia.

— Não houve luta — disse Mara, agachada perto da mancha escura no chão. — Foi rápido.

Rapidez, pensei, é uma forma educada de chamar a covardia. Quando alguém chama o outro para conversar levando uma faca, o diálogo já nasce morto.

Jonas Sardinha era conhecido no bairro por um sorriso discreto e pela mania de cumprimentar estranhos. Gente assim não costuma desconfiar quando o perigo escreve chamando pelo nome. Aceitou o convite de um velho amigo e pagou com a vida. Morreu pouco depois de chegar à Casa de Saúde Cristo Rei, antes que pudesse entender como a amizade pode virar emboscada.

As mensagens estavam todas ali, preservadas como prova e como confissão. Áudios curtos, voz tensa, frases atravessadas por ressentimento. Renato Dalma não ameaçava diretamente; preferia o subentendido. Sempre achei que o subentendido é a língua oficial da violência.

Renato e Jonas cresceram juntos. Dividiram a pobreza, os sonhos pequenos e as derrotas previsíveis. A mulher entre eles foi só o estopim. A verdadeira ruptura veio da ideia infantil de posse: do corpo, da memória, da história do outro.

— A traição maior não foi o amor — murmurei para Paulo, enquanto ele organizava o material. — Foi a quebra da confiança. Isso ninguém perdoa.

Renato fugiu, como quase todos fogem, acreditando que o remorso anda mais devagar que as pernas. Encontramo-lo ao amanhecer, escondido na casa de parentes, com os olhos fundos de quem não dormiu e nem dormirá tão cedo.

— Ele riu de mim — disse Renato, já algemado. — Eu vi o desprezo.

Ouvi em silêncio. Aprendi cedo que assassinos gostam de justificar o irreparável com palavras grandes demais para seus atos.

Na sala de interrogatório, sob a luz impiedosa, Renato confessou. Falou de honra, de vergonha, de impulso. Nenhuma dessas palavras devolveu Jonas Sardinha à vida.

O relatório estava quase pronto quando outro chamado nos levou de volta a Lagoa Seca. Um comerciante morto na própria padaria. À primeira vista, roubo. À segunda, medo.

O café ainda morno sobre o balcão denunciava a farsa. Descobrimos rápido: uma funcionária, pequenos furtos, uma ameaça de denúncia. Um empurrão mal calculado. A morte sempre chega sem perceber que não foi convidada.

Duas mortes, o mesmo bairro. Motivos distintos, origem comum: gente encurralada por sentimentos que não sabe nomear.

Ao deixar Lagoa Seca naquela noite, percebi que o bairro já fingia normalidade. Crianças corriam, portas se fechavam, televisões acendiam. Quebranzol tem esse talento estranho para seguir em frente sem olhar para trás.

Mara comentou que a cidade nunca aprende.

Discordei em silêncio. Aprende, sim. Aprende a esquecer.

Hoje, tantos anos depois, ainda penso em Jonas Sardinha quando a chuva cai desse jeito. Não pelo crime em si, mas pela facilidade com que uma amizade foi transformada em sentença. Há casos que resolvemos. Outros nos resolvem por dentro.

Este foi um deles.


Traição em Lagoa Seca integra “Cadernos de Quebranzol, Memórias de um delegado de Polícia”, uma série de contos policiais narrados pelas memórias do delegado Velner Faria, onde cada caso resolvido deixa algo mal resolvido dentro dele. O personagem é fictício, criado no primeiro livro policial do autor “Operação Borboleta”

@redehoje
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