
Luiz Antônio Costa | Contos e Crônicas do Caminho
João morava na roça, numa daquelas bandas afastadas onde o silêncio se mistura com canto de passarinho. Tinha umas vacas mansas, uns porcos, umas galinhas e mais uns bicho que ele nem chamava de criação, só sustento mesmo da família. O sítio era pequeno, mas era deles, e cada canto tinha uma lembrança. Tudo era vivido com simplicidade e suor. Era final dos anos 1960 entrando pelos anos 1970.
Junto com João e Jovina, quem tocava o lugar. Eram os quatro filhos: Vanilda com 17 anos, Rita com 14, Romeu com 15 e Pedro com 18, a famosa “escadinha”. Todo dia era dia de trabalho: tirar leite, capinar, tratar dos bichos. O sol organizava o relógio da família. E, mesmo na lida pesada, havia alegria e união, a riqueza de quem vive em paz com a terra.
Numa manhã de domingo, Pedro apareceu encostado no mourão da cerca, calado feito pedra. João achou aquilo estranho, pois o rapaz nunca ficava quieto daquele jeito. Foi se aproximando devagar, com cuidado de pai que conhece o olhar do filho. No terreiro só se ouvia o barulho do vento no capim.
— O que que tá acontecendo, fio? — perguntou João.
Pedro respirou fundo, como se puxasse coragem do fundo do peito.
— Pai… eu vô pra cidade. Num dá mais pra mim ficá aqui, não.
Aquelas palavras pareceram cortar o ar. João ficou parado, tentando entender. Era como se algo ali tivesse se rompido. Depois de uns segundos, engoliu em seco e perguntou com calma, embora o coração doesse.
— Uai… mas por que isso, Pêdo?
O rapaz olhou firme para o pai.
— Já tenho idade, pai. Quero estudá, crescê, ter outra vida. Aqui no cafundó num tem jeito pra mim.
Jovina, com seus 35 anos e mãos marcadas pelo trabalho, ouviu e entrou na conversa, o rosto carregado de preocupação.
— Meu fio… essa vida pode ser simples, mas é boa, é de união. Na cidade ninguém nem sabe quem é quem. Cê num vai achá lá o que tem aqui, não.
Pedro abaixou a cabeça, mas respondeu sem hesitar.
— Eu sei, mãe… sei que aqui tem amor. Mas eu quero tentar. Quero vê com meus próprio olho o que o rádio fala.
Mais tarde, Romeu puxou o irmão no canto do paiol, preocupado. O cheiro de capim gordura e madeira dava um ar de confidência.
— Fala pra mim, Pêdo… cê tá indo por causa de música, baile e futebol que ocê ouve no rádio?
Pedro sorriu de leve, como quem assume sem vergonha.
— É isso e mais um tanto. Aquilo me chama, Romeu. Se der errado, pelo menos tentei.
Vanilda, ouvindo de longe, ficou encantada com a ideia. Parecia ver outro mundo diante dos olhos. Mais tarde, quando ficou só com a mãe, arriscou:
— Mãe… e se eu fosse tamém?
Jovina cortou a frase no meio.
— Nem pense, fia! Isso é briga certa com seu pai.
A moça abaixou o rosto, mas o desejo ficou aceso dentro dela. Pedro acabou indo. E a vida da cidade foi dura e bonita na mesma medida. Teve trabalho pesado, fome, festa, alegria e angústia. Depois se mandou pra Belo Horizonte e nunca mais voltou pra morar. Só restaram as lembranças dele pelos cantos da casa.
Depois de dez anos, Pedro voltou só de visita. Contou causos da cidade grande que deixaram os irmãos encantados. Cada história era como se abrisse uma porteira na curiosidade deles. Não demorou muito para que, um por um, todos seguissem o mesmo caminho: foram embora tentar a vida longe. E João e Jovina ficaram sozinhos na roça.
Um dia, João estava sentado na varanda, cansado como nunca. O sol se escondia atrás das montanhas, tingindo tudo de dourado triste. Jovina costurava devagar, como se cada ponto segurasse um pedaço da saudade. O silêncio era tão grande que só o ranger da cadeira quebrava a monotonia. Foi então que Ramiro apareceu.
Ele veio montado no cavalo, chapéu torto e olhar atento. Ao ver João daquele jeito, desacelerou o animal e parou diante da varanda.
— Uai, João… que cara é essa? O que que tá acontecendo, sô?
João respirou fundo, como quem tira um peso das costas.
— Ah, Ramiro… eu e a Jovina tamo sozinhos faz muito tempo. Os fio tão no mundo, as fia quais num vem. A casa tá grande demais.
Jovina confirmou com um aceno leve, sem parar a costura. O silêncio entre os três parecia encher o terreiro. Ramiro desceu do cavalo, amarrou a rédea no corrimão e sentou ao lado do amigo.
— Uai João… isso é da vida. Fi cresce, cria asa e voa. Cê sabe disso.
João passou a mão no rosto, abatido.
— Mas dói, Ramiro… parece que eles levô um pedaço de nós junto.
Ramiro coçou a barba, pensativo. Depois disse:
— Ó… num sou de falá bonito, mas eu ouvi uma coisa uma vez na rádio… de um escritor estrangeiro, um tal de Gibran.
João ergueu as sobrancelhas.
— E o que que ele dizia, Ramiro?
O vizinho ajeitou o chapéu, tentando lembrar direitinho.
— Ele dizia que os fio num é da gente, não. Que eles vêm pelo nosso corpo, mas pertence é ao amanhã. Que a gente dá amor, mas pensamento não dá não. Eles têm caminho próprio.
João ficou calado, sentindo o peso e a verdade da frase. A brisa da tarde passou entre eles naquele ritmo de zona rural. Ramiro continuou com voz calma.
— Falou também que nóis é igual arco… e os fio são flecha. Que o arqueiro puxa nóis com força pra lançá eles longe.
João olhou pro horizonte, como se pudesse ver as flechas que eram seus filhos cruzando o mundo.
— E o que sobra pra nóis? — perguntou quase num sussurro.
— O arco fica firme, João. Firmeza é o que sobra. E isso já é muito — respondeu Ramiro, pondo a mão no ombro do amigo.
Jovina deixou cair uma lágrima, mas sem perder a postura. Era a verdade que ela sempre temeu e sempre soube. Naquela noite, João ficou na varanda olhando o céu cheio de estrelas até mais tarde. Entendeu que a dor não era abandono, era só o rumo natural da vida. Os filhos estavam onde precisavam estar. E ele ali, firme, segurando o resto.
Uma brisa leve passou, trazendo cheiro de terra molhada. Jovina veio, sentou ao lado dele e segurou sua mão.
— Eles tão bem, João. É isso que importa.
Ele apenas assentiu. O tempo seguia seu curso, e era preciso seguir junto com ele. A saudade continuava, mas agora era visita, não ferida. Entendeu, enfim, que flecha não volta, mas leva consigo o toque do arco.
Baseado no poema “Nossos Filhos”, publicados no livro “O Profeta” (1923) de Khalil Gibran, que viveu na primeira metade do século XX. Nasceu em 1883, morreu em 1931, deixando obra que mistura poesia, filosofia e arte, é influenciada tanto pela sua cultura libanesa quanto pela vida nos Estados Unidos, para onde se mudou ainda jovem. Este conto/crônica fará parte do livro “Contos — e crônicas — do Caminho”, do autor.