
O avô acomodou-se na cadeira da sacada, olhando a avenida movimentada lá embaixo. A cidade tinha pouco mais de 100 mil habitantes, mas naquele fim de tarde parecia maior com o vai e vem dos carros. Um a um, os oito netos foram se juntando. Era sempre assim no meio e no fim do ano: muitos moravam longe, alguns a mais de 500 quilômetros, outros passando dos mil. Mas todos voltavam, e a reunião se tornava inevitável e especial.
— Quero deixar meu legado a vocês em cultura — disse o avô, enquanto o sol descia por trás dos prédios. — As músicas que vocês aprenderam a gostar e os livros que descobriram… isso ninguém pode tirar de vocês.
O neto músico, de 21 anos, ajeitou o boné e comentou:
— Pois é, vô. Minha paixão pelo Paul McCartney começou com você. Eu fui conferir os Beatles porque você falava tanto deles… e olha aí: hoje toco teclado, baixo, bateria e guitarra. Se não fosse aquilo, talvez eu nem fosse músico.
O avô sorriu e olhou para o neto mais velho, já formado e exercendo outra profissão, mas que não largava a música.
— E você continua tocando nos bares?
— Continuo, vô. — Ele riu. — Trabalho de dia, toco à noite quando dá. A música não solta da gente, né?
A neta de 20 anos, que sempre chegava com um livro na mão, entrou na conversa:
— Vovô, lembra quando eu te dei Gente Pobre, do Dostoiévski?
— Lembro demais — respondeu ele. — Eu pensava que literatura russa era complicada e arrastada. Mas você me deu aquele livro… e depois fui eu mesmo comprar Crime e Castigo naquela livraria de Belo Horizonte.
— Foi mesmo — disse ela. — Você ficou olhando a prateleira uns bons minutos até escolher a edição.
Os outros netos riram. Todos, de alguma forma, tinham relação com música ou literatura: alguns tocavam instrumentos, outros escreviam poemas, um adorava fotografia inspirada em capas de discos antigos, outro estava começando a compor. A menor, de 7 anos, puxou o celular.
— Eu gosto mais dessas aqui! — disse, mostrando vídeos de k-pop. — E vou dançar no Natal da família!
O avô aproximou-se para olhar.
— E tá certíssima. Música boa é a que toca a gente. Seja Skank, Gil, Rita Lee, Beatles, Rod Stewart ou esses grupos novos aí.
Os netos se entreolharam, e a conversa seguiu sem pressa: falaram de Lulu Santos tocando na estrada, das baladas do Roupa Nova nos encontros em família, das músicas country que o avô gostava de ouvir nas viagens longas. Do barulho dos carros lá embaixo, nada atrapalhava aquele clima de varanda.
— No fim das contas — disse o avô, olhando ao redor — cultura é só companhia. A gente aprende, passa pra frente sem perceber, e pronto. Ela cresce junto com a gente.
Outra segurou a mão dele.
— E a gente aprende conversando assim, né, vovô?
— É — respondeu ele, sorrindo sem pretensão. — Conversa boa sempre ensina alguma coisa. E nem precisa ter lição no final.
E então todos ficaram ali, falando de músicas, livros, viagens e lembranças, enquanto a noite caía devagar sobre a cidade. A conversa terminou como começou: leve, natural e cheia de histórias que, sem esforço, viravam conhecimento compartilhado.
Este conto/crônica fará parte do livro “Contos — e crônicas — do Caminho”, do autor.