
Antes de chegar a Patrocínio, o repórter já vinha conversando com a cidade havia dias, ainda que sem sair do Rio de Janeiro. Nos salões abafados do Jornal do Comércio, atravessara livros do Império, relatórios de presidentes de província, inventários e papéis antigos. Sabia datas, nomes, patentes. Mas também aprendera cedo que, no sertão, informação demais costuma provocar desconfiança.
Na varanda larga da casa-grande, o coronel Joaquim Pedro Barbosa o recebeu em pé, sem cerimônia. Não sorriu de imediato. Observou. Mandou servir café forte como quem cumpre obrigação, não gentileza.
— Então é o senhor que anda perguntando demais — disse, antes mesmo de se sentarem. — Repórter da Corte.
— Do Rio de Janeiro — corrigiu o jornalista. — Corte já acabou, coronel. Mas a memória ainda manda.
Barbosa resmungou qualquer coisa, sentou-se pesado.
— Memória boa é a que serve pra trabalhar. O resto é enfeite.
— É justamente o enfeite que me interessa — respondeu o repórter, abrindo o caderno sem pedir licença. — Os livros dizem que Patrocínio começa em 1772, por ordem do Conde de Valadares ao capitão Inácio de Oliveira Campos.
— Livro gosta de mandar — cortou o coronel. — Aqui ninguém recebeu ordem nenhuma que prestasse.
— Mas recebeu — insistiu o jornalista. — Inácio ocupou a região, montou a Fazenda do Brumado dos Pavões, criou gado, abriu caminho. Sem ele, não haveria arraial.
— Haveria sim — rebateu Barbosa. — Talvez com outro nome. Ou sem nome nenhum, que é como muita coisa nasce.
— Os registros falam em quatro mil cabeças de gado.
— Registro fala o que o dono manda falar — rosnou o coronel. — Gado não funda cidade.
— Estrada funda — provocou o repórter. — Anhanguera passou por ali.
— Passou e foi embora — disse Barbosa. — Quem passa não manda. Quem fica é que aguenta.
O jornalista inclinou-se para frente.
— E quem ficou, coronel? Os livros citam Joaquina do Pompeu como peça central. Administrou terras, manteve produção, segurou o patrimônio.
Barbosa fez um gesto seco com a mão.
— Mulher segura casa. Terra quem segura é homem.
— Mesmo quando o homem some? — retrucou o repórter, rápido. — Ou morre?
O coronel estreitou os olhos.
— O senhor escreve bonito, mas aqui a coisa era simples. Joaquina fez o que qualquer viúva de respeito fazia: não deixar bagunçar.
— Os documentos mostram mais do que isso — insistiu o jornalista. — Mostram decisão, comando.
— Documento gosta de exagerar quando o assunto rende conversa na capital — disse Barbosa. — Aqui ninguém obedecia ordem de mulher. Obedecia a necessidade.
— Necessidade também é poder — rebateu o repórter.
— É fome — respondeu o coronel. — Não misture as coisas.
O café esfriava entre eles.
— Em 1793 surgem os primeiros moradores definitivos — retomou o jornalista. — Pelo menos oficialmente.
— Oficialmente até a próxima seca — respondeu Barbosa. — Sertão não gosta de papel assinado.
— O arraial cresce com a doação do terreno da capela, em 1800.
— Doação feita por promessa — corrigiu o coronel. — Promessa pesa mais que escritura por aqui.
— Mas promessa também é instrumento político — provocou o carioca.
— Política é quem manda ter — devolveu Barbosa. — O resto é conversa de gabinete.
— Em 1804 surge a igreja — continuou o repórter. — Pequena, de barro. Saint-Hilaire passou por aqui e descreveu pobreza.
— Saint-Hilaire era francês — disse o coronel, com desdém. — Botânico. Andava anotando planta e reclamando de estrada. Passou ligeiro, dormiu mal e escreveu pior.
— Mas escreveu — respondeu o jornalista. — E é fonte histórica.
— Fonte que bebe quem está longe — rosnou Barbosa.
— Já Pohl ficou mais tempo — continuou o repórter. — Médico alemão, naturalista. Observou o povo, a alimentação, o cotidiano.
— Comeu melhor porque soube esperar — admitiu o coronel. — Mas também escreveu do jeito dele. Estrangeiro olha tudo como se fosse atraso.
— Mesmo assim, ajudam a entender a época.
— Ajudam a entender o olhar deles — corrigiu Barbosa. — Não o nosso.
— Havia negros livres no arraial — acrescentou o jornalista. — Mas aparecem como nota de rodapé.
— Porque ninguém perguntava a eles — disse o coronel. — Nem o senhor teria perguntado naquela época.
O repórter engoliu seco.
— Em 1822, Distrito de Ordenanças. Soldados, juiz de paz, cartório.
— Foi quando o lugar começou a mandar — disse Barbosa. — Pouco, mas mandava.
— Ou fingia — provocou o jornalista.
— Símbolo também manda — respondeu o coronel. — Às vezes mais que espingarda.
— Em 1840, a vila se emancipa de Araxá.
— Aí começou a errar sozinha — disse Barbosa. — Com nome próprio.
— O senhor presidiu a primeira Câmara — apertou o repórter.
— Presidi — respondeu seco. — Entre 1874 e 1877. Tempo de lei nova e costume velho. Gente que não sabia obedecer nem mandar.
— O senhor se vê como fundador político?
Barbosa bateu a mão na mesa.
— Fundador é quem fica quando dá errado.
O jornalista não recuou.
— E Joaquina do Pompeu?
— Já falei — rosnou o coronel. — Fez o que dava. Não mais que isso.
— Os livros da capital discordam.
— A capital gosta de herói — disse Barbosa. — Aqui a gente gosta de sobreviver.
Silêncio.
— Coronel — disse o repórter, por fim — Patrocínio nasceu de fé, estrada ou interesse?
Barbosa cuspiu a resposta como sentença.
— Nasceu de necessidade. O resto é discurso pra jornal.
— E o que o senhor quer que eu escreva?
O coronel levantou-se devagar, pesado.
— Escreva que aqui ninguém foi santo. Nem homem, nem mulher. Que quem manda aprende a ser duro. E que o sertão não pede licença pra existir.
Ao descer a varanda, noite fechada, o repórter entendeu que não saía dali com uma história pacificada. Levava um confronto. E percebeu que Patrocínio não se explicava nos livros. Se disputava.
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Esta é uma obra de ficção baseada em fatos reais com licença poética e livre criação. Este conto faz parte do livro inédito Crônicas e Contos do Caminho.