Sei que muitos haverão de se espantar ao me ver falando. Considerando que não há nos anais da ciências, das artes e da história, registros nos quais um outro de minha espécie tenha soltado o verbo e se desbragado a falar.

Mas, ora gente, para que tanto assombro, já se esqueceram das histórias de Monteiro Lobato. É Antropomorfismo que fala. Não se lembram, Tia Anastácia quase caiu dura, quando aquela boneca de “paninho ordinário”desandou a tagarelar. Suspeitou-se até que o dr Caramujo tinha errado na dose da pílula falante. Emília, não só falou como, quase ateou fogo no Sítio do Pica Pau Amarelo com sua língua de trapo. E Herbie, o fusca dos estúdios de Dísney, não falava, mas aprontava todas.

Na passagem bíblia diz que “Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para envergonhar os sábios”. De um jeito ou de outro, Deus quebra a prepotência humana. Os instrumentos que ele utiliza, são os mais inusitados possíveis. Certa feita, o Senhor da vida, pôs a jumenta de Balaão para lhe dizer umas poucas e boas. A cobiça havia cegado os olhos do profeta, a ira de Deus tomara a forma de um anjo armado. A mula via tudo, o profeta, coitado, nada. A ficha do ‘sô Bala’ custou a cair.

Sou a Serra do Cruzeiro. Isto mesmo. O patrimônio turístico, ambiental e cultural patrocinense em pessoa- digo, em minério e argila. Há milhares de anos, (Ou, milhões, se é ofensa perguntar a idade a uma mulher, é ofensa perguntar a idade a uma serra) somente vejo e ouço, vejo e ouço...agora peço um minuto de atenção. Vou utilizar o mais elevado dom humano: O dom da palavra. Depois de uma boneca de pano falar e um burro chamar a atenção de seu dono, diga-me o que há de errado de uma serra falar? Só por que sou de Patrocínio?

Do alto de minha experiência sei o que posso e passo a dizer. Nada que tenha acontecido, aqui por estas cercanias nos últimos duzentos anos, escapou de meus olhos de lince. Testemunhei ( em silêncio) episódios históricos, fatos horripilantes, assim como vibrei com as conquistas de nosso povo e me indignei com as injustiças praticadas por estas plagas.

Daria todo ouro, que dizem haver em minhas entranhas, para não ter visto alguns lances que macularam a história bem nos primórdios do município. Lembro-me, aliás como se fosse hoje, quando aquela expedição de bandeirantes, chefiada por Lourenço Castanho Taques, abateu sobre as tribos de índios Araxá e Cataguases. Fique estarrecida vendo aquele bando travestidos de agentes da civilização, dizimaram os pobres nativos, não poupando nem as mulheres, nem crianças. O chão ficou manchado de sangue inocente. Vi tudo...

Tenho na retina também, quando estes paladinos insurgiram contra os levantes de negros, igualmente indefesos. Eu aqui, me sentido uma abolicionista, fazendo o possível para escondê-los da escravidão. Adorava vê-los, se safando dos troncos, passando por mim em noite alta, respirando livres e recomeçando a vida em outro lugar. Outros, resistiram, formavam os seus quilombos, por estas sesmarias...Infelizmente, nem todos escaparam. Até hoje ouço seus gritos agonizante pedindo piedade e clemência.

Saudade? Tenho, sim e de uma mulher. Seu nome, Joaquina de Pompeu. Que mulher! Era a Rainha do Oeste Mineiro, Baronesa do gado, Sinhá Braba, Grande Dama do Sertão, "Heroína Mineira da Independência do Brasil" . Prendada esposa do fundador da cidade de Patrocínio: Capitão Inácio de Oliveira Campos, com quem se casou com apenas 12 anos e o Capitão lá com os seus 30 anos. (Imagine, isso hoje, é um crime, como deveria ser naquele tempo) Mas era um homem de bem, diga-se de passagem. A verdadeira história, contudo, precisa ser dita. Logo que por aqui se aportou, o Capitão foi acometido de uma deficiência neurológica, talvez o que vocês hoje chamariam de AVC. O fato é que ele ficou praticamente inválido para a lida. Foi quando, Dona Joaquina, apanhou com pulso firme as rédeas daquele empreendimento. Não foi fácil, pois, “lugar de mulher era na cozinha mesmo”. Ela comandava tudo, inclusive exportava gado para a Corte de Dom Pedro I.

Para mim Joaquina de Pompeu, foi a fundadora de Patrocínio e sua primeira prefeita. Leia lá na enciclopédia livre: “Quando morreu deixou em seu testamento "11 fazendas, 40 mil cabeças de gado, centenas de escravos, baixelas de prata, bandejas, barras de ouro e outros tesouros". Além de uma imensa área territorial de 48.400km2 que hoje abrange as cidades de Abaeté, Dores do Indaiá, Bom Despacho, Pitangui, Pompéu, Pequi, Papagaio, Maravilhas e Martinho Campos. Segundo Vasconcelos, as áreas somadas eram maiores do que a Bégica, Suíça, Holanda, Dinamarca e El Salvador. Sua fortuna hoje seria de aproximadamente 2 bilhões de reais”.

Então, vamos fazer justiça. Quem, realmente fundou a cidade de Patrocínio, foi uma mulher. Joaquina de Pompeu. E não o seu marido, Ignácio de Oliveira Campos. E não se tem uma praça, uma rua, sequer com o seu nome. Famosa, mesmo é a outra custosa lá de Araxá, que tem museu, ganhou filme..

Eu também, Serra do Cruzeiro, me sinto injustiçada. Aqui e ali, me citam como ponto turístico. Tem uma estrofe do Hino de Patrocínio todinha pra mim: “Da cidade uma légua distante , só se ergue o Cruzeiro da Serra. Quem o avista diz logo, num instante é a maior maravilha da terra”. Minha silhueta está lá naquele triângulo verde no topo da bandeira do município. Ora, ora, fico toda engabelada. A realidade é que poucos conhecem meu potencial e me respeitam. Por muitas vezes quase fui dizimada do mapa. Aqui cabe até uma palavra de gratidão ao pessoal da Associação de Meio Ambiente- AMAR, criada pela Lei nº 3536 de 24 de abril de 2002, no governo Betinho, a ex- vereadora Marly Ávila, Menestrel Rangeliano-Eustáquio Amaral, saudoso Pedro Cortes de Oliveira, Alan Guimarães, Poeta Flávio Almeida, Reinaldo Machado, Eliane Nunes e Odirlei Magalhães. Eles tomaram as minhas dores. E que dores!

Não bastava viver hoje com o meu dorso todo escalavrado, esse ano, infelizmente, um incêndio queimou em mim, uma área que equivale a aproximadamente 50 campos de futebol. Vi quem ateou o fogo, é gente ingrata que sempre está por aqui.

Precisamos fazer justiça, o governo Deiró, asfaltou o meu acesso, iluminou, revitalizou o Cristo, foi pouco, mas, eu me senti valorizada. Chegou a falar em construir um restaurante panorâmico, não vai sair, mas, pelo menos, fui lembrada. Outros prefeitos recebiam verbas para melhorias, mas desviavam a grana pra outros empreendimentos. Como a dizer que não sou importante. O abandono é queimadura de mil graus.

Mesmo enfrentando, todo esse perrengue, hoje, se chega um visitante na casa de um patrocinense, eles colocam a família inteira dentro do carro e traz aqui, no pé do Cristo. Ficam horas e horas apreciando a cidade lá em baixo. Um empreendimento imobiliário novo, um novo prédio sendo erguido, a cidade espalhou, o olhar do turista se encanta...

Ora, longe de mim, dar uma de humano e desandar a me gabar. Contudo, não sou um monturo qualquer. Além de ouro que pode ser encontrado em minhas entranhas, tenho um mineral por nome quartzo. Ótica, eletrônica, tele-comunicações e informática, não existiriam sem este minério. Tenho-o em abundância aqui em meu regaço.

Sem entrar no mérito da questão, eu, Serra do Cruzeiro, tenho um proprietário e não é o município de Patrocínio, como se apregoam.

Sabe como são estas coisas. Certo prefeito me retalhou com estradas e construiu um Cristo no meu topo. Outro prefeito, veio me tombou como patrimônio municipal. Não consideraram que tenho um proprietário e ele jamais foi consultado, nem ressarcido. Isto me faz sentir muito mal.

Se você me perguntar sobre o que mais me preocupa atualmente, respondo-lhe sem pestanejar. A duplicação da Rodovia 365. Não suporto mais ver tantas vidas perdidas em terríveis acidentes. BASTA! DUPLIQUEM ESTA RODOVIA DA MORTE! Quando acidentes tenho ainda que testemunhar?

Muito me preocupa, também a situação sócio-econômica do município e a crônica desunião de nossos líderes políticos. Sei do que estou falando. A cidade já assoprou 180 velinhas. Somos 46 anos mais velhos do que a cidade de Uberlândia; 23 anos mais velhos do que Araxá; 26 anos mais velhos do que Patos de Minas e 55 anos mais velhos do que a capital, Belo Horizonte. Comparem. Há déficit de qualidade de vida. Paramos no tempo. Certa vez, Menestrel Rangeliano- Eustáquio Amaral, (ele, sempre ele) escreveu ao final de uma de suas crônicas: “A cidade cada dia mais bela. Há problemas, como o desemprego e a má política. Mas há soluções. Há esperança. Há determinação. Como é bom ser patrocinense, seja nativo, seja adotivo. Patrocinense é mais do que cidadania. É um inexplicável estado de espírito”

Este orgulho de ser patrocinense, não pode arrefecer. Há muito para ser feito. Os anos, os séculos se passando, temos perdido a chance de pensar Patrocínio de forma inteligente, democrática, harmoniosa, pacífica, civilizada e inclusiva. E lá vem mais uma eleição para deputado estadual, federal, governador e presidente. Para deputados, como sempre, faltou articulações. Ninguém está pensando no futuro de Patrocínio. A cidade fica parecendo curva de rio nesta época.

Muita vaidade, questiúnculas nanicas e interesses particulares prevalecem. Cidade sem unidade, cidade sem futuro. Hecatombe a vista.

Nem imaginam como eu, Serra do Cruzeiro tenho como dádiva do criador pertencer ao município de Patrocínio.

Palavra. Não sinto um pingo de inveja da Serra do Curral, Serra do Cipó, Serra da Canastra, Serra do Espinhaço, Serra da Mantiqueira, Serra dos Cristais e sei lá das quantas. Tenho em meu sopé uma das cidades mais lindas que vi nascer e quero ver crescer e nesta geração.

Talvez tenha me empolgado e falado muito, mas faltou dizer o principal: A função sublime de uma serra é aproximar as pessoas de Deus. Fica aqui, portanto o meu apelo. Como nos velhos tempos, Jovens, crianças e idosos, subam aqui para conversar com o Criador. Peça a Ele sabedoria para as nossas autoridades e paz e prosperidade para o nosso povo. Agora me recolho ao silêncio. Pode ser que volte a falar pode ser que não.

AME PATROCÍNIO, COMO EU SEMPRE AMEI!