Foto: reprodução vídeio Costa Berranteiro



Quando criança uma das coisas que mais me fascinavam era a capa Ideal. Os boiadeiros as usavam em dias de chuva a nas tardes frias de junho até agosto. Minha casa ficava na esquina onde hoje é uma das ruas mais movimentadas do bairro São Judas, antigo Alto da Estação, em Patrocínio, MG: a Rua Manoel Damas com Presidente Vargas. Ali, diariamente passava boiada que – segundo os adultos da época, era levada para Barretos, o maior movimento das comitivas era em direção à cidade paulista (o site “As Comitivas” diz que “a partir do ano de 1.913, quando se instalou ali o primeiro frigorífico do Brasil. A Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos foi criada no ano de 1.956, inspirada nas comitivas e na figura do peão de boiadeiro”). Todo fim de tarde nos fundos da nossa casa, passava aquele mar de gado.

Aquela estrada boiadeira criava personagens na minha cabeça de criança. O mês de agosto, muito frio, lá pelas cinco da tarde quando o gado passava, levantava uma poeira que no final ficava suspensa no ar por um bom tempo. No meio daquele poeirão, só via a silhueta dos peões e seus gritos para manter o gado na linha. Além dos gritos, o estalo do chicote — era como um tiro de fuzil, que eu também ouvia, quando os atiradores do TG 020 iam praticar tiros no estande que ficava a uns 500 metros da minha casa. Não sei por que, mas tenho a impressão que o gado passava sempre na mesma hora pela minha casa, com regularidade britânica.

Acho que ainda gosto dos filmes de faroeste um pouco por causa da aura daquela movimentação diária, que era igual à do filme “Rio Vermelho” com John Wayne e Montgomery Cliff  que assisti umas dez vezes e não me canso, é como reviver minha infância. No filme, Thomas Dunson (John Wayne) é dono de um império, um verdadeiro rei do gado. Junto com seu filho adotivo Matthew Garth (Montgomery Clift) ele inicia uma longa viagem com parte de seu rebanho, indo do Texas ao Missouri. “Durante o percurso acontece um desentendimento entre pai e filho que faz com que Matt leve o gado para outra direção, despertando a ira de Tom”, conta o portal Adoro Cinema.

A boiada que passava à porta de casa tinha a mesma formação: à frente vinha a comitiva, era composta por burros de reserva  que depois eu soube que era para descansar, enquanto outros estavam sendo usados para montaria na viagem —; a carroça (ou burros de carga) com os mantimentos e duas pessoas  cozinheiro e ajudante  que preparavam a alimentação da turma. Depois de uns 20 minutos surgia um peão com o berrante, logo atrás a boiada com 200, 300, 500 ou mil cabeças de gado, uns peões  não sei quantos  de lado e atrás vinham mais dois fechando o cortejo. Tinha que ter cuidado com o estouro da boiada. Nossos pais sempre diziam para a gente não assustar os bois, pois um estouro poderia ser uma tragédia.

As moças do Alto da Estação ficavam tão loucas com os peões quanto as de hoje ficam com os jovens cantores sertanejos. Os jovens, como eu, queriam tornar-se um deles. Recorro mais uma vez ao site “As Comitivas” para explicar seus trajes: chapéu de aba larga, lenço no pescoço, guaiaca, bombachas, botas de cano alto e chilenas tinindo a cada passo. Suas mulas eram arreadas com esmero, a tralha cheia de argolas de metal reluzente (alpaca). Na garupa, além da capa “Ideal” no porta capa de vaqueta, cheio de franjas e “margaridas”, pendia da anca direita o “cipó” (laço) de couro de veado-mateiro

Esse gado levava muito tempo para cruzar o trecho próximo à minha casa que ia da antiga caixa d'agua (à direta, onde hoje está o Rotary Brumado) até sumir, depois do campo de Ferroviário (onde atualmente é a Brumado Auto Peças). Eu, em cima da última tábua do curral que ficava atrás da minha casa, observando aquela maravilha. Ainda pré-adolescente, ficava com inveja daqueles peões montados em suas mulas, vestidos com a capa Ideal que cobria dos ombros do peão, passavam pela anca traseira do animal e descia até o meio das pernas das mulas. Aquilo formava ao mesmo tempo uma figura enigmática – como nos filmes de faroeste - e poética, aos olhos do menino.

Mesmo agora, toda vez que alguém diz algo sobre peões, ainda que sejam de rodeio, me vem à memória aquela imagem de uma pessoa de chapéu, todos os paramentos, montada em uma mula e com sua capa Ideal. É uma lembrança fantástica mesmo para quem era um garoto urbano dos anos 1960.


Esta cronica integra o livro "O Som da Memória - O retorno" , que será lançado em setembro de 2022