O leitor já deve ter ouvido essa frase do título centenas de vezes, não é mesmo? Para fazer companhia ao “tiozão do pavê”, o chato do carnaval retorna todos os anos com essa mesma cantilena: “bom mesmo era o carnaval do meu tempo”. Mas será que isso é mesmo verdade? Óbvio que não. O carnaval bom é aquele em que temos pernas pra pular a noite toda, saúde para namorar muito e vontade de repetir tudo igual no dia seguinte. Ou seja, carnaval bom é aquele em que somos jovens.

Mas o chato insiste com o argumento das músicas. Aquelas marchinhas daqueles tempos é que eram boas, atualmente as músicas são apelativas etc. Bem, vamos lá. O próprio Caetano Veloso, ao ser perguntado sobre as críticas às letras das canções da Axé Music, ironizou: “bom mesmo é ‘Allah-la-ô, ô-ô-ô, ô-ô-ô, mas que calor, ô-ô-ô, ô-ô-ô’, não?”

Racismo, homofobia e misoginia

Ironias à parte, há problemas muito piores em algumas marchinhas antigas. A principal delas é uma das mais famosas, O teu cabelo não nega, de João Valença, Raul Valença (mais conhecidos como Irmãos Valença) e Lamartine Babo. Criada em Recife em 1929 e lançada em 1931, ela é um sucesso retumbante desde então.

O seu refrão, que todos conhecem, diz:

O teu cabelo não nega, mulata

Porque és mulata na cor

Mas como a cor não pega, mulata

Mulata, eu quero o teu amor

Pra começar, o termo “mulata” foi considerado pejorativo por parte do movimento negro por remeter à “mula”. Outro problema é a questão do cabelo. A protagonista da obra teria, pretensamente, o cabelo diferente dos negros, mas a cor “não nega”.

O carnaval, para além dos corsos, do lança-perfume e dos antigos blocos de outros tempos, melhorou e se tornou mais saudável em vários aspectos. 

O pior de tudo na letra vem agora: “mas como a cor não pega”. Esse talvez seja um dos versos mais racistas de toda a música popular brasileira. O que “pega” é doença.

Para encerrar, há também na canção o uso sexual da mulata, que nos remete à velha máxima do período colonial de como as nossas mulheres eram tratadas (e em muitos casos ainda são): “branca para casar, mulata para foder, negra para trabalhar”.

Não é um caso isolado

A canção de Lamartine e dos irmãos Valença,no entanto, não é o único caso. O compositor carioca João Roberto Kelly, atualmente com 84 anos, compôs duas pérolas da homofobia que são cantadas até hoje – cada dia menos, mas

ainda são – Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão.

A primeira, dos idos dos anos 1960, vem na onda do preconceito de então com relação aos homens usarem cabelos compridos e exige em seu refrão: “corta o cabelo dele, corta o cabelo dele”, como uma palavra de ordem, repetidas vezes, nos remetendo a uma horda de fascistas perseguindo um cabeludo que pode ser gay.

Podia continuar aqui citando inúmeros exemplos. O fato é que o carnaval, a maior festa popular do Brasil, é um retrato das grandes transformações sociais pelas quais passou o Brasil nos últimos cem anos ou mais.


                                        No final dos anos 1970 acontece a explosão do frevo no carnaval, tendo Moraes Moreira como um de seus principais nomes.

O que foi feito é preciso conhecer

Penso que ignorar essas canções não é o melhor caminho. Como bem diz o verso da canção O que Foi Feito Deverá (De Vera), de Milton Nascimento, Fernando Brant e Márcio Borges: “O que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir”.

Mas é bom lembrar, no entanto, que o carnaval, para além dos corsos, do lança-perfume e dos antigos blocos de outros tempos, melhorou e se tornou mais saudável em vários aspectos.

O principal deles é, justamente, na música. Entramos no final dos anos 1970 com a explosão do frevo no carnaval. Como dizia o próprio Moraes Moreira, o ritmo, que é pernambucano, chegou à Bahia e realizou-se então a magia dos trios elétricos. As canções, que até então tinham – em sua maioria – dois ou três acordes, passaram a ganhar riqueza melódica, harmônica, com letras que referenciavam a festa e o pertencimento.

Bloco do Prazer, Vassourinha Elétrica, Festa do Interior, entre vários outros deixam para trás muitas das velhas marchinhas, várias delas carregadas de preconceito. O próprio Caetano, já citado acima, fez em 1977 o lindo álbum Muitos Carnavais”, com 12 frevos seus e de outros autores, entre eles Atrás do Trio Elétrico, que prenunciava para o Brasil a tendência que surgia por lá.

Daniela Mercury é considerada a “Rainha do Axé”, onda que surgiu em Salvador e chacoalhou o país e o mundo. 

Axé Music

Capaz de perceber e antecipar tendências, Caetano também previu a riqueza da Axé Music na década de 1980, uma mistura explosiva de ritmos como o ijexá, samba-reggae, frevo, reggae, merengue, forró, samba duro, ritmos do candomblé e o pop rock. Além de canções belíssimas, a nova onda que surgiu em Salvador e chacoalhou o país e o mundo traz nela a afirmação da etnia, enfim, a grande variedade, riqueza e força da cultura do negro baiano, do negro brasileiro.

                                             A comissão de frente da Beija-Flor fazia referência ao movimento Black Lives Matter no carnaval de 2022. 

O samba enredo

Outra grande resposta tem vindo do Rio de Janeiro, sobretudo da Marquês de Sapucaí. Grandes escolas, principalmente a Mangueira, têm reavaliado e mostrado na avenida as possibilidades de transformação social e afirmação da cultura negra. Sambas que outrora homenageavam vultos duvidosos da nossa história passaram a tocar em feridas crônicas da nossa história, como o racismo, homofobia, misoginia, entre outros.

O fenômeno se repete em São Paulo, onde ocorre outro fato, que é a formação de escolas poderosas vindas das torcidas organizadas. Gaviões da Fiel e Mancha Verde, apesar de disputarem entre as grandes, são alvos de preconceitos dos que insistem em dizer que não se mistura futebol com samba, futebol com política e por aí afora.

                                      Escola de samba de São Cristóvão, vice-campeã do carnaval carioca em 2018, Paraíso do Tuiuti abordou os 130 anos da Lei Áurea. 

Tanto no Rio quanto em São Paulo e em várias outras capitais do Brasil, ocorre outro fenômeno: as bandas. Organizadas, assim como as outras agremiações, de baixo pra cima, negociaram com governos o seu direito às ruas. O melhor exemplo, que iniciou a novidade, é o da gestão de Fernando Haddad (2013 a 2016) em São Paulo, com a orquestração do baiano Juca Ferreira na Secretaria da Cultura.

Não há mais volta

Muito provavelmente, além de chorar o fim da sua juventude, é diante de tantas e boas revoluções por minuto que o carnaval tem nos proporcionado que o chato insiste em lamentar aqueles outros do seu tempo. Aqueles carnavais em que humilhar minorias, mulheres e negros era uma “brincadeira”. Acabou. O carnaval do nosso tempo vem sendo construído há tempos e veio para ficar. Bom mesmo é o tiozão saber que não há mais volta.


Artigo publicado na Revista Forum