Em procedimento inédito no âmbito da UFMG, uma estrutura funerária indígena que integra o acervo do Museu de História Natural e Jardim Botânico (MHNJB) da Universidade foi submetida a uma tomografia computadorizada no último sábado, 1º de abril, no Hospital das Clínicas (HC) da UFMG. A estrutura funerária, na qual foi sepultada uma criança indígena, foi identificada em 2004, no sítio arqueológico Lapa do Caboclo, em Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, durante escavações de pesquisa conduzida pelo arqueólogo Andrei Isnardis, professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia (DAA) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG.

As imagens geradas no exame serão utilizadas em pesquisa de mestrado que tem sido desenvolvida pela arqueóloga Gabrielle Ferreira, indígena do povo Borum-Kren com ancestrais Puri, no Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGAn) da UFMG. Os resultados da tomografia, que vão compor o acervo do MHNJB, também serão utilizados, posteriormente, para consulta da equipe de conservação e restauração do museu.

Exemplar único

A estrutura funerária investigada é composta de um estojo cilíndrico, de cerca de 70 centímetros de comprimento e 30 de largura, feito de casca de árvore, na qual os ossos da criança, pintados de vermelho, foram depositados. Numa das extremidades, há couro, e, na outra, há palha. Ainda não se sabe se a terra atualmente presente na estrutura é do momento do sepultamento da criança ou se foi ocupando espaço com o tempo e revirando os ossos.

O sepultamento, que pode ter entre 600 e 1.300 anos, segundo estimativa dos pesquisadores, foi uma das poucas estruturas arqueológicas não atingidas pelo incêndio que ocorreu em 2020 em uma das reservas técnicas do MHNJB. A maior parte dos sepultamentos humanos provenientes de pesquisas arqueológicas que integram o acervo do Museu foi atingida pelas chamas. A estrutura que será investigada por meio da tomografia foi preservada, sem avarias, porque estava localizada, à época, na exposição de arqueologia, que não foi atingida pelo fogo. Por ser um exemplar único, a estrutura revela detalhes que ainda não eram conhecidos pela arqueologia brasileira.

Conversa e conhecimento

A tomografia computadorizada é um dos momentos do desenvolvimento do estudo da pesquisadora Gabrielle Ferreira, que, desde 2022, faz sua pesquisa de mestrado com esse sepultamento, no âmbito do PPGAn. As imagens e vídeos que resultantes do procedimento poderão ser utilizados para análise dos ossos ali depositados, a fim de que se possa traçar aspectos da história de vida da criança e de seu povo, ainda não identificado, o que poderá contribuir para ampliar conhecimentos sobre a história indígena no território onde se localiza hoje o estado de Minas Gerais.

A estudante explica que a tomografia é um dos processos que vão contribuir para que ela tenha "uma conversa mais íntima com os ossos da criança". "Aquilo que, na ciência, a gente chama de análise, eu gosto de chamar de conversa, porque os ossos falam bastantes coisas", diz. "Eu poderia escavar a estrutura e retirar os ossos da casca de árvore para poder diálogar com esses ossos, mas a gente pensou na tomografia para ter uma ideia de como está a disposição dos ossos dentro desse estojo e, talvez, visualizar também quais ossos temos dentro da estrutura. De cima, eu consigo ver e identificar alguns, como a escápula e o rádio, mas a tomografia pode dar uma ideia de quais outros tipos de ossos estão lá”, complementa.

A aproximação de Gabrielle Ferreira com o MHNJB e com a pesquisa atual se deu por meio do professor Andrei Isnardis, que ela contatou on-line, quando fazia graduação na Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul. "Eu entrei em contato porque ele era o responsável pelas escavações na época em que houve o incêndio no museu. Eu já queria trabalhar com esqueletos, no mestrado, e entrei em contato com o professor justamente para saber o que tinha restado do incêndio e poder pensar no meu projeto. E essa criança é a única pessoinha que restou”, lembra.

Com a pesquisa, Gabrielle Ferreira quer ampliar as discussões no panorama bioarqueológico em Minas Gerais, mas, acima de tudo, entender a história dessa criança e o que ela tem a lhe dizer. "Eu tenho uma premissa de trabalho descolonial, porque, como uma mulher indígena, eu não consigo separar da minha pesquisa e do meu ser que os esqueletos são pessoas, crianças. Essa separação acontece muito durante as pesquisas bioarqueológicas: as pessoas se tornam materialidade. Mas não é qualquer pessoa que se torna materialidade. Nossos corpos indígenas e os corpos de pessoas pretas costumam se tornar essa materialidade”, argumenta.


                                                                O sepultamento, que pode ter entre 600 e 1.300 anos, segundo estimativa dos pesquisadores


Quando a gente morre, independentemente da forma como a gente morre, independentemente de como a morte é encarada ou do que a gente espera de um ritual fúnebre, outras pessoas decidem o que vai ser dos nossos corpos, e a arqueologia é feita dessas outras pessoas que vão decidir o que vai ser feito dos nossos corpos. Como arqueóloga, agora faço parte dessas pessoas que contam histórias e conto a história dessas outras pessoas que já morreram. Mas, antes de ser arqueóloga, sou uma mulher indígena. Então, o meu principal objetivo é nunca esquecer que aquela criança é um ser, uma pessoinha que nasceu de alguém, que foi amada por alguém. É um processo de ancestralidade muito forte, e houve todo um cuidado para que aquela criança fosse depositada naquele estojo", completa.

Fonte: Comunicação da UFMG (Texto com informações de Hugo Rafael)