
Imagem produzida por Inteligência Artificial com foto do piloto original
A história começa em algum ponto da década de 1920, na região conhecida como Mata dos Folhados, no interior de Patrocínio. O menino Elias caminhava atrás do carro de bois, guiando os animais com a vara fina, atento ao ritmo da roça. O pai havia partido cedo demais, e o silêncio que ficou não era apenas o da ausência, mas o da responsabilidade que caiu sobre ele e os irmãos. A mãe, Dona Mariana, fazia o que podia para sustentar Ana, Aprígio, Geraldo e o próprio Elias, mas o jovem sentia que precisava fazer mais.
— Mãe… acho que meu destino não é só aqui, não, disse ele certa tarde, enquanto ajudava a recolher lenha.
— Filho, destino é aquilo que Deus mostra no caminho. Se o seu está longe, vá. Só não esqueça de onde saiu, respondeu ela, segurando as lágrimas com a força que só as mães conhecem.
Elias então pegou a estrada para Patrocínio. Chegou com pouco mais que a roupa do corpo e a coragem dos seus 17, talvez 18 anos. Arrumou emprego como ajudante de mecânico, aprendendo a desmontar motores como quem desmonta mistérios. Depois passou a motorista, dirigindo caminhões alheios até juntar, com os irmãos, cada vintém para comprar um velho Ford abandonado. Reformaram a máquina no quintal, martelando lata até tarde da noite.
— Se esse caminhão rodar, nós roda junto, brincou Aprígio, enxugando o suor.
— Vai rodar, sim. E vai levar a gente longe, respondeu Elias, com aquela convicção silenciosa que ele sempre teve.
Logo vieram as viagens para São Paulo, levando queijos. Estrada de terra, poeira vermelha subindo, duas semanas para ir e voltar. Dormiam encostados no volante, comiam pão duro molhado em café frio, economizando tudo. Mas Elias observava algo mais: olhava para o céu como quem estuda um mapa.
Foi numa dessas viagens que descobriu o Campo de Marte. Ali fez amizade com Camargo, Pedroso e um norte-americano chamado Evans, instrutor de acrobacias. Ficou três dias inteiros ouvindo aulas teóricas e entrando em aviões como quem pisa no futuro. Ninguém sabia disso em Patrocínio — nem sua mãe, nem os irmãos, muito menos Etelvina, que mais tarde mudaria sua vida.
— Você leva jeito, rapaz, disse Mr. Evans, enquanto ajustava o cinto de Elias.
— Um dia eu ainda chego voando na minha cidade, respondeu ele, meio brincando, meio prometendo.
Prometeu e cumpriu.
Sem aviso, sem rumor e sem alarde, um avião monomotor cruzou o céu de Patrocínio numa manhã que começou como qualquer outra. A cidade parou. Uns correram para fora, outros se benzeram achando que era coisa de guerra. O avião baixou, pousou numa área improvisada e, quando a porta abriu, lá estava Elias, sorrindo.
— Meu Deus, Elias… o que você fez?, perguntou Dona Mariana, entre espanto e orgulho.
— Aprendi a voar, mãe. E agora quero ensinar o povo daqui a voar também.
A partir daquele dia, a cidade nunca mais foi a mesma. Com ajuda de amigos, Elias demarcou uma pista, construiu um pequeno hangar e fundou o aeroclube. Em 1945, tornou-se instrutor e abriu sua primeira turma de pilotos. Nela estava Etelvina, que mais tarde seria sua esposa e também uma das primeiras mulheres da região a pilotar. Voou muitos anos. Ensinou os filhos. Ensinou coragem.
— Seu Elias, eu nunca imaginei que fosse subir num avião, confessou Jaci Martins Ferreira no primeiro voo.
— Pois agora imagine voar a vida toda. É isso que o céu faz com a gente, respondeu o instrutor, ajustando os comandos.
Elias viveu intensamente até onde o tempo permitiu. Aos 41 anos, partiu cedo, tão cedo quanto o pai. Deixou saudade funda, mas também deixou um rastro luminoso no céu de Patrocínio: o rastro de quem acreditou que o impossível cabia dentro de um sonho simples de menino.
E aqueles que voam até hoje — Jaci, seus filhos, seus amigos — sabem que cada decolagem ainda carrega um pouco do toque firme do candieiro que virou comandante.
História baseada em fatos reais ocorridos com Elias Alves da Cunha (04/08/1912 – 27/03/1953).
Este conto/crônica integra o livro “Contos — e crônicas — do Caminho”, do autor