Luiz Antônio Costa - Contos do Caminho

O dia ainda mal clareara quando o cruzamento das avenidas João Alves do Nascimento e Faria Pereira começou a pulsar. Entre seis e sete e meia da manhã, aquele ponto parecia concentrar o mundo inteiro em poucos metros. Motores roncavam, buzinas se atropelavam, o cheiro de gasolina se misturava ao do pão fresco que escapava das padarias. Sob o ritmo impaciente do semáforo, vidas se cruzavam — umas apressadas, outras à deriva.

Entre vendedores de balas, malabaristas e pedintes, um pequeno grupo destoava da rotina. Um homem, uma mulher e uma menina surgiram ali numa manhã de segunda-feira, trazendo nos gestos a leveza de quem chegou, mas também o peso de quem perdeu o rumo. O homem segurava um cartaz improvisado, recortado de uma caixa de papelão. A mulher mantinha o olhar baixo, enquanto a criança, de tranças curtas e vestido gasto, abraçava uma boneca de pano feita de retalhos.

Miguel era o nome do homem. Falava com um sotaque que misturava espanhol e português — um portunhol cansado, mas carregado de esperança. María, sua esposa, pouco dizia. Apenas observava os carros, talvez contando o tempo entre os sinais, talvez sonhando com um futuro que ainda não sabia se viria. Sofía, a filha, tinha quatro anos e uma curiosidade silenciosa, dessas que aprendem cedo a temer o barulho do mundo.

O cartaz dizia: “Somos família venezuelana. Buscamos trabalho. Qualquer ajuda é bem-vinda.”
Poucos liam. Menos ainda paravam.

Na sacada de um prédio próximo, um morador costumava observar o cruzamento todas as manhãs. Sabia de cor o movimento, as buzinas, os sons do comércio abrindo. Mas naquela terça, o olhar dele se prendeu àquela família. Havia algo diferente ali — talvez a serenidade de quem ainda não desistiu, talvez o contraste da esperança contra o concreto.

No segundo dia, o observador desceu à rua. Esperou o semáforo fechar e se aproximou. Miguel ergueu o rosto com um sorriso contido. María apenas segurou mais firme a mão da filha.

— São de onde? — perguntou o homem, com cuidado.

— Da Venezuela, senhor — respondeu Miguel, com o mesmo tom tímido. — Eu me chamo Miguel, ela é María... e esta é nossa filha, Sofía.

Sofía acenou timidamente e se escondeu atrás da mãe. A boneca pendia de uma das mãos, suja, mas inteira — um brinquedo sobrevivente.

O diálogo seguiu curto, entre frases quebradas. Miguel contou que haviam cruzado Pacaraima, vivido um tempo em Boa Vista, depois em Uberaba, até chegarem àquele ponto em Patrocínio. A viagem fora longa. Dormiram em abrigos, às vezes na rua.

— A fome era o pior — murmurou María, num português hesitante. — Miguel é eletricista... mas ninguém quer contratar estrangeiro.

O homem da sacada ouviu em silêncio. Pensou em tantas vidas que passavam apressadas por aquele cruzamento sem notar que ali, entre o vermelho e o verde do semáforo, havia uma história inteira tentando recomeçar.

O sinal abriu. Miguel recolheu o cartaz e puxou María e Sofía pela mão. Voltaram à calçada. Os carros arrancaram, indiferentes.

Mas o observador ficou ali, por um instante, sentindo que algo havia mudado — não na rua, mas dentro dele. O cruzamento das avenidas continuava o mesmo. Só que agora, entre as buzinas e o cheiro de pão fresco, ele sabia que cada semáforo fechado podia ser, também, o ponto de partida de uma nova vida.


Esta obra é uma peça de ficção, baseada em fatos reais. Qualquer semelhança será mera coincidência. A imagem não é real, é gerada por Inteligência Articial. Este conto fará parte do livro "Contos do Caminho", do autor. 

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