Audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais debateu propostas que restringem financiamento a eventos culturais


Participantes da audiência pública na ALMG se manifestam contra os projetos de lei. Foto: Willian Dias

Da Redação da Rede Hoje
Artistas, produtores culturais e parlamentares se reuniram em audiência pública na Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa de Minas Gerais na quinta-feira, 25 de setembro de 2025. O debate focou em projetos de lei que buscam proibir o uso de recursos públicos para eventos que supostamente promovam apologia ao crime. Tais proposições, popularmente conhecidas como "leis anti-Oruam", tramitam em diversas casas legislativas do país, incluindo a Câmara Municipal de Belo Horizonte e a ALMG. Os participantes da audiência apontaram inconstitucionalidade e racismo nas propostas, vistas como tentativa de criminalizar expressões culturais periféricas.

O rapper Oruam, filho do líder faccional Marcinho VP, está preso há mais de dois meses, acusado de normalizar o crime em suas letras. Sua figura tornou-se uma referência central para os defensores dos projetos em questão. Em Minas Gerais, todas as propostas similares são de autoria de parlamentares do Partido Liberal. O evento na ALMG contou com a apresentação do rapper Kadosh Miranda e a presença de diversos artistas contrários às iniciativas legislativas.

NA CÂMARA MUNICIPAL DE BH

Na Câmara Municipal de Belo Horizonte, o Projeto de Lei 25/25, de autoria do vereador Vile Santos, recebeu pareceres favoráveis nas comissões e aguarda análise em Plenário. A previsão é que a votação ocorra ainda no mês de outubro, conforme informou o vereador Pedro Rousseff durante a audiência. O parlamentar petista defendeu a mobilização da sociedade civil para impedir a aprovação da matéria. Pedro Rousseff classificou a proposição como uma lei que não agrega valor à sociedade.

Na Assembleia de Minas, o Projeto de Lei 3.254/25, de autoria da deputada Amanda Teixeira Dias, recebeu parecer pela legalidade de seu relator, Thiago Cota, do PV. O processo foi subsequentemente enviado para vistas ao deputado Leleco Pimentel, do PT. Outros dois projetos, de números 3.262/25 e 3.263/25, dos deputados Eduardo Azevedo e Bruno Engler, respectivamente, já foram recebidos pelo Plenário da casa. Essas proposições foram encaminhadas para as comissões temáticas para análise, mas ainda não iniciaram sua tramitação formal.

A deputada Andréia de Jesus, autora do requerimento para a realização da audiência pública, afirmou que os argumentos utilizados pelos proponentes das leis são falaciosos. Para a parlamentar, o objetivo real é discriminar culturas populares e expressões artísticas originárias das periferias urbanas. Ela citou ritmos como o rap, o funk, o trap, os bailes e as batalhas de MCs como alvos específicos dessas iniciativas. A deputada enfatizou a necessidade de combater narrativas que buscam proibir a produção cultural da juventude.

QUESTIONAMENTOS JURÍDICOS E CRITERIOLOGIA

Um dos pontos centrais levantados pelos críticos dos projetos foi a falta de clareza sobre os critérios para definir o que constitui apologia ao crime. O advogado e cantor Marco Túlio Dias, conhecido como Negro Mar, questionou qual instância técnica seria responsável por esse julgamento. Ele indagou sobre as garantias de contraditório e ampla defesa para os artistas eventualmente acusados sob essas leis. Negro Mar integra o Coletivo Negro do Vale do Aço e também participou do debate.

O artista e advogado citou artigos da Constituição Federal que, em sua avaliação, atestam a inconstitucionalidade das proposições. Além do artigo 5º, que assegura a liberdade de manifestação cultural, ele mencionou dispositivos que determinam ser prerrogativa da União legislar sobre licitações e direito penal. Negro Mar argumentou que, ao condicionar licitações à inexistência de certos conteúdos, municípios e estados estariam usurpando uma competência exclusiva do governo federal.

Lucas Luiz de Souza Cruz, administrador do movimento Beagá Vai Virar Baile, observou que o ordenamento jurídico brasileiro já possui leis que proíbem a apologia ao crime, à sexualização infantil e ao uso de drogas. Para ele, a existência dessas normas torna desnecessária a criação de legislações específicas direcionadas a expressões culturais. Lucas Cruz defendeu que, em vez de criar leis censuradoras, os parlamentares deveriam fortalecer programas de prevenção à criminalidade.

IMPACTOS SOCIAIS E ECONÔMICOS

Ao longo da reunião, diversos participantes destacaram a importância social e econômica das manifestações culturais das periferias. A professora e pesquisadora da UEMG, Maíra Neiva Gomes, articuladora da Frente Nacional de Mulheres do Funk, afirmou que o funk é a expressão da periferia mais inclusiva. Ela explicou que o gênero musical recepciona influências de sons considerados brancos, como a música eletrônica e a clássica, enquanto preserva tradições quilombolas.

Maíra Gomes caracterizou a criminalização da cultura negra como um processo estrutural do Estado brasileiro. Ela lembrou que outras expressões, como o samba e a capoeira, também foram alvo de proibições no passado. A pesquisadora classificou as propostas de leis anti-Oruam como uma afronta aos direitos humanos e à memória afrodescendente no país. Todos os manifestantes concordaram que essas culturas movimentam uma cadeia produtiva extensa.

O mobilizador e produtor cultural Saúva MC revelou que já foi encarcerado e atribuiu ao hip hop a mudança em sua vida. Ele afirmou que a cultura o tirou da criminalidade e lhe deu uma nova perspectiva. A produtora cultural Bel Bertinelli dirigiu críticas aos parlamentares favoráveis aos projetos, afirmando que os agentes culturais não pedem "PEC da blindagem". Ela declarou preferir discutir como levar recursos para as favelas, e não como retirá-los.

REGISTRO E PROTEÇÃO LEGAL

A gerente de Patrimônio Cultural Imaterial do Ipham, Steffane Pereira Santos, informou que o instituto está disponibilizando um cadastro para expressões de cultura popular. Segundo ela, 56 municípios mineiros já manifestaram interesse em cadastrar manifestações relacionadas ao hip hop. Steffane Santos defendeu o cadastramento como uma ferramenta para dar visibilidade a essas culturas e para subsidiar a formulação de políticas públicas específicas.

A representante do Ipham explicou que o registro de cada forma de expressão cultural é importante para sua proteção legal. Ela afirmou que a medida pode ser usada para o fortalecimento dessas manifestações. O cadastro é visto como um passo para o reconhecimento oficial e a preservação das culturas periféricas. A audiência pública se encerrou com um apelo por maior diálogo entre o poder público e os representantes das comunidades culturais.

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