Marlúcio Anselmo, ex-presidente do Compir, destacou a luta por reconhecimento justo durante homenagem à Consciência Negra, tema que a Rede Hoje segue abordando. Hoje, registramos Abdias Nascimento (PDT-RJ), que, ao assumir o Senado em 1991, refutou ser o primeiro senador negro, citando 22 antecessores
Crédito foto: Arquivo Sphan
Em 1983, Abdias Nascimento participa de peregrinação à Serra da Barriga, sítio histórico do Quilombo dos Palmares
Redação da Rede Hoje
Em um discurso marcante na Câmara Municipal de Patrocínio, Marlúcio Anselmo, ex-presidente do Compir, usou a tribuna para refletir sobre a importância do Dia da Consciência Negra e a longa jornada de um povo que ainda luta por seu reconhecimento e igualdade de direitos. Embora o mês de novembro já tenha passado, a Rede Hoje segue reforçando temas fundamentais que não devem ser esquecidos, como a luta histórica e a resistência do povo negro brasileiro, que, mesmo após séculos de história, ainda enfrenta desigualdades profundas.
A questão da representação política negra no Brasil é uma das áreas que revela a complexidade dessa luta. Em 1991, há 33 anos, quando o ativista Abdias Nascimento (PDT-RJ) assumiu seu assento no Senado, muitos consideraram um marco histórico, celebrando-o como o primeiro senador negro da história do país. Porém, Abdias não compartilhou dessa visão. Durante seu discurso inaugural, ele fez questão de desmentir essa narrativa, apresentando uma pesquisa cuidadosa que revelou que, antes dele, 22 senadores negros haviam ocupado o cargo.
Marlúcio Anselmo, ex-presidente do Compir em Patrocínio-MG
Abdias explicou que, após realizar um exaustivo trabalho de pesquisa histórica, descobriu que esses senadores, embora fossem de ascendência africana, nunca haviam assumido publicamente sua etnia. Muitos, inclusive, tinham sua identidade racial apagada de seus registros oficiais e de suas imagens, como forma de se integrar a uma elite política branca. A pesquisa de Abdias, portanto, não apenas identificou esses senadores, mas também trouxe à tona um capítulo de nossa história que havia sido ocultado.
Os 22 senadores negros que precederam Abdias, segundo ele, nunca se identificaram como afro-brasileiros, e muitos de seus biógrafos, além de historiadores, contribuíram para essa omissão, evitando abordar suas origens africanas. Entre os nomes encontrados por Abdias estão figuras de destaque como Tancredo Neves, Rodrigues Alves e Nilo Peçanha, que, além de senadores, também exerceram cargos de alta relevância, como a presidência da República.
A descoberta de Abdias trouxe à luz a existência de senadores negros desde o período imperial. Dentre eles, o Barão de Cotegipe e Zacarias de Góis e Vasconcelos foram destacados por suas posições políticas influentes, sendo inclusive ministros de Estado. Durante a escravidão, alguns desses senadores negros, como o Visconde de Jequitinhonha e o Visconde de Inhomirim, desempenharam papéis significativos na luta contra o sistema escravocrata.
No entanto, nem todos os senadores negros foram defensores da abolição. Abdias observou que figuras como o Barão de Cotegipe, apesar de sua ascendência africana, eram ferrenhos defensores da escravidão e retardaram o processo de abolição, buscando até indenizar os senhores de escravos. Esse paradoxo dentro da política negra no Brasil é um reflexo das complexas questões de identidade e resistência enfrentadas por esses indivíduos ao longo da história.
A historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, especialista em população negra no Brasil Imperial, também compartilha de uma visão crítica sobre a invisibilidade histórica da presença negra nesse período. Ela aponta que, embora houvesse uma população negra livre muito maior do que a historiografia tradicional costuma admitir, muitos negros de destaque, como senadores e líderes políticos, preferiam silenciar sobre sua identidade racial devido ao estigma social que envolvia a negritude.
Além de abordar as figuras negras no Senado, Abdias também analisou o impacto da ideologia eugenista que prevaleceu no Brasil durante o final do século XIX e início do século XX. A busca pela “limpeza do sangue” e a “europeização” da população, conforme defendiam intelectuais como Sílvio Romero e Oliveira Viana, criaram um contexto em que muitos políticos negros esconderam sua ascendência africana para serem aceitos na elite branca do país.
Esse movimento de embranquecimento da população brasileira foi amplamente apoiado pelo Estado e pela intelectualidade, sendo consolidado pela Constituição de 1934, que, por meio de seu artigo 138, incentivava políticas de eugenia. Abdias Nascimento, em seus estudos e discursos, denunciou esses processos como uma tentativa de apagar a identidade afro-brasileira e, consequentemente, deslegitimar as contribuições culturais, políticas e sociais dos negros no Brasil.
Ao longo da República, a presença de senadores negros continuou a ser sub-representada, apesar de figuras como Severino Vieira, Francisco Glicério e Tancredo Neves, que possuíam ascendência africana, terem marcado presença no cenário político. Abdias Nascimento destacou, no entanto, que muitos desses políticos não reconheciam publicamente suas raízes negras, seguindo o padrão de silêncio e negação de identidade que foi imposto por tanto tempo.
A análise feita por Abdias em relação a essas figuras históricas é crucial para entendermos como o racismo estrutural no Brasil impediu o reconhecimento da verdadeira diversidade racial na política nacional. A ideia de que o país era predominantemente branco ou mestiço foi sustentada por gerações, e qualquer tentativa de reverter essa narrativa foi recebida com resistência.
A história dos senadores negros, como foi apresentada por Abdias Nascimento, é uma lição importante sobre como a identidade racial pode ser manipulada para se adequar a normas sociais e políticas. Ao revelar a verdadeira história desses homens, Abdias não apenas resgatou figuras importantes da política brasileira, mas também abriu um espaço para a reflexão sobre o racismo estrutural e as barreiras que ainda persistem na sociedade brasileira.
Abdias ressaltou a importância da identidade nacional brasileira, que é fundamentalmente africana. Ele falou sobre a negação da beleza dessa identidade ao longo da história e destacou que a maioria da população brasileira, com raízes africanas, foi alijada do protagonismo na construção da nação. Para ele, reconhecer a verdadeira história do Brasil, que inclui a contribuição do povo negro, é fundamental para fortalecer a autoestima e dignidade dos brasileiros, principalmente da população negra.
Nascimento também levantou a necessidade de ensinar a verdade nas escolas, resgatando a dignidade de um povo que foi marginalizado por séculos. Ao afirmar que a história oficial do país não reflete adequadamente a importância da herança africana, ele apontou que a sociedade brasileira, muitas vezes, tem dificuldades em aceitar a sua própria imagem, que é predominantemente negra. Esse processo de reconstrução histórica, segundo ele, é essencial para que o Brasil alcance um futuro mais inclusivo e democrático.
Além disso, Abdias Nascimento fez uma provocação importante sobre a identidade de pessoas que ocupam cargos políticos, mencionando a possibilidade de outros senadores se identificarem como afro-brasileiros, como ele o fez. Para ele, a importância não estava em ser o primeiro ou o vigésimo terceiro afro-brasileiro no Senado, mas sim em lutar pelas causas da população negra, que são, na verdade, as causas de toda a nação.
O senador também lembrou que a contribuição do povo negro está presente em diversas esferas da sociedade, mas frequentemente é ignorada ou minimizada, como exemplificado pelo caso de Machado de Assis. A tentativa de embranquecer a história de grandes figuras como ele demonstra a resistência em reconhecer o protagonismo negro em uma nação que, embora seja a maior população negra fora da África, ainda lida com os traumas da escravidão e do racismo estrutural.
Abdias Nascimento terminou seu discurso com uma afirmação poderosa sobre o papel do Senado e da sociedade brasileira na mudança dessa narrativa. Ele deixou claro que o que importa é a luta pelos direitos do povo negro e a valorização de sua identidade. Essa luta, segundo Nascimento, deve ser uma bandeira de todos, pois as causas afro-brasileiras são, na verdade, as causas de todos os brasileiros, independentemente de sua origem.
“Outros senadores poderão se proclamar descendentes da África. Se sou ou não o primeiro afro-brasileiro nesta Casa, se sou ou não o 23º, pouco importante. Importa, sim, que eu possa cumprir este mandato de luta pelas causas do povo afro-brasileiro, que são as causas da nossa nação. Machado!”, disse Abdias Nascimento.
A luta contra o racismo, como enfatizado por Marlúcio Anselmo e Abdias Nascimento, continua sendo um desafio presente, exigindo uma constante vigilância e educação para que o Brasil possa, finalmente, reconhecer e valorizar a verdadeira diversidade de seu povo. É fundamental que as gerações atuais e futuras compreendam a importância de celebrar a história e a identidade negra de maneira plena e sem distorções.
O discurso de Abdias Nascimento, ao revelar a omissão da história dos senadores negros, também traz a necessidade de uma revisão profunda das narrativas oficiais sobre a formação do Brasil. Em um país tão diverso, onde a luta pela igualdade de direitos é uma batalha constante, é imprescindível que as histórias silenciadas sejam contadas e que a contribuição dos negros na construção da nação seja amplamente reconhecida e celebrada.
Fonte consultada: Agência Senado