Ivan Batista da Silva*

. Não foi ali que fiz o vestibular. Aliás, foi o último vestibular dentro daquele modelo em que cada curso realizava seu vestibular composto de uma prova de Português e uma da disciplina do curso. Cada curso fazia o seu vestibular. No ano seguinte, veio o vestibular unificado e único. Fazia-se a prova de todas as disciplinas independente do curso. O vestibular deixou de ser por média e passou a ser classificatório, acabando com o problema dos excedentes que eram uma dor de cabeça para o governo em Brasília.

O prédio, na rua Carangola, era enorme, moderno, com fachadas de vidro em ambos os lados. Destacava-se no bairro residencial. A rampa de acesso dava-lhe um ar de grandiosidade. O saguão, amplo, enorme. Suas colunas colossais a sustentá-lo, pareceram-me muito maior aos olhos de um rapaz do interior. Paredes altas, muito altas, davam-me a sensação de ser engolido por aqueles espaços.

Rapazes e moças circulavam livremente, falando todos ao mesmo tempo, um alvoroço demasiado grande neste primeiro dia de aula. Barbudos e cabeludos circulavam demonstrando domínio de si e da situação. Roupas, as mais espalhafatosas possíveis, vestidos longos, túnicas à moda hippie.

Não conhecia viva alma naquele ambiente. Não reconheci nenhuma pessoa que fizera o vestibular comigo. Uma sensação estranha tomou conta de mim. Senti uma solidão enorme. Só, somente só, naquele turbilhão, um novato no meio de tantos veteranos. Senti-me, como o poeta Drummond, um Gauche naquele espaço e lembrei –me ,também, de Graciliano Ramos que não se sentia confortável em ambiente nenhum. Restou-me contemplar a beleza do prédio que realmente me encantava.

Pergunta daqui, pergunta dali, fui informado de que meu curso seria no último andar, o oitavo. A primeira aula era do professor Arthur Versiane Veloso. Acompanhou-me com o olhar até eu me sentar. Olhava-me fixamente, certamente a pensar: o que este menino está fazendo aqui na filosofia. Soube, posteriormente, que era um professor renomado, respeitadíssimo, um dos fundadores da UFMG havia quarenta anos, lá no edifício Acaiaca.

Parece que todos os barbudos e cabeludos do prédio haviam se juntado na minha sala. Fiz amizade com muitos deles, como o Ricardo, Zé Luiz, o Alpheu, Bebeto e o Wilmar que ,de um dia para o outro, apareceu barbeado, cabelo cortado, para gozação de seus colegas. Fugiu para a Itália, auxiliado por uma professora italiana que, por isto, foi dispensada da Universidade

Um entra e sai da sala muito esquisito. Um voltava com um jornal, outro com revista e se punham a ler como se não tivesse professor. Outro entrava com um lanche. Tudo muito estranho para mim, acostumado à disciplina colegial.

Havia outros dois cursos no nosso andar: Psicologia e História. Nos intervalos, os corredores lotavam. Os grupinhos iam se formando naturalmente. .Achava estranho porque muitos se esquivavam quando chegavam outras pessoas, ou mudavam de assunto. Só fui entender isto mais tarde. Mas era um rebuliço total.

Lá , embaixo, no subsolo ficava a Sociologia, mas os alunos estavam sempre espalhados no saguão, com um ar de superioridade, talvez por ter sido um dos primeiros a irem para aquele prédio. Tive alguma familiaridade com este curso porque dois colegas de república eram da Sociologia.

O restaurante funcionou apenas um ano. Alunos que pareciam estar na Universidade apenas para criar confusão, um dia, tomaram conta do restaurante, para protestar contra o preço da refeição(que era barata), e serviram almoço de graça para todo mundo. Na semana seguinte, fecharam o restaurante e nos mandaram para o Curso de Direito ou para a Arquitetura. Escolhi o do Direito na praça Afonso Arinos , próximo do meu trabalho.

O Campus da Pampulha surgiu bem mais tarde. Nesta época, existiam algumas unidades espalhadas pela cidade: a Fafich, a arquitetura, a odontologia, a medicina, o Direito e as engenharias próximas à praça da Estação. A Universidade era, ainda, pequena. Mas a FAFICH, onde se concentravam todos os cursos das Humanas, era grandiosa. Dizer que era aluno da Fafich era motivo para ser respeitado, quase reverenciado. Acredito que, em parte, era pelo clima de liberdade de expressão que ali existia. As ideias borbulhavam nas salas, nos corredores ,não importava se coerentes ou não.

Lia-se muito. Sartre, Marcuse, Fernando Henrique Cardoso(Dependência e Desenvolvimento na América Latina) eram autores comuns na Filosofia e Sociologia. Max Weber era praticamente reverenciado na Sociologia e Filosofia. Os menos apensos às grandes e profundas teorias, liam Herman Hesse e Heminguay que se aproximava do espírito negativista de alguns filósofos da época. Li o livro de Sartre, intitulado “As Palavras” um dos livros mais leves deste autor. No entanto, de um pessimismo e negativismo total. Uma das últimas frases do livro: Escorreguem mortais, não queiram segurar-se.

A ebulição social refletia também na Universidade. 1968 foi o ano de grandes protestos. de muitas passeatas de oposição ao regime militar. A música se tornou um canal de oposição ao regime. Surgiu a tropicália com Caetano e Gil. Os Festivais renovavam a música brasileira, sobretudo com músicas de protesto. Nas festas e reuniões de estudantes só se ouvia, a noite inteira, a música de Geraldo Vandré, “Para não dizer que não falei das flores”. Virou hino de protesto..

Em 1969, a situação mudou. Com o AI 5, acabaram-se as passeatas, os protestos públicos A censura baixou firme. Tudo era vigiado nas Universidades. Nos corredores, à boca pequena, comentava-se a situação política, ou a situação individual de um ou outro aluno ou de algum professor, enrolados com o famoso e temível IPM- Inquerito policial militar.

Mas, claro, tudo isto não abalava a agradável convivência entre os alunos, não afetava o funcionamento dos cursos.


*Ivan Batista da Silva é diretor executivo do Colégio Atenas em Patrocínio | colunista da Rede Hoje

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