Imagem estilizada por IA, baseada em foto da ferrovia Vitória-Minas, feita sábado, 20/9/25

Luiz Antônio Costa | O Som da Memória
Há muitos anos tenho o pensamento de voltar a viajar trem, coisa que fazia muito na infância, quando meu pai era ferroviário. O tempo passou, a ferrovia continuou atuando em Patrocínio, porém, sem o transporte de passageiros. A estrada de Ferro Vitória-Minas, também conhecida como Trem da Vale, que é o único trem de passageiros de longa distância que opera diariamente no Brasil, ligando Belo Horizonte (MG) a Cariacica, na Grande Vitória (ES). Acompanhando de minha esposa, Márcia, viajei de Belo Horizonte a Vitória na segunda-feira, voltei ontem, sábado seguinte. Esta crônica é um resumo de histórias e personagens que encontrei nessa travessia. Foram treze horas cada viagem. O apito forte da máquina anunciava sempre o início de um percurso e também o começo de dezenas de histórias que se entrelaçavam pelos trilhos.

Um garotinho de uns três anos, no banco da frente, olhos vivos, fixou-se em mim. Não era a mochila ou o livro aberto na mesinha, mas o chapéu que eu trazia na cabeça que despertou sua curiosidade. Ele ria, apontava e cochichava com a mãe e o avô, como se tivesse descoberto um segredo cômico. Sorri de volta, e ele respondeu com gargalhadas inocentes, transformando um objeto banal em elo de uma alegria simples. Depois, com entusiasmo, me mostrou um gibi com formigas desenhadas, como quem apresenta uma grande descoberta. 

Mais adiante, um trabalhador de voz firme e pele castigada pelo sol e pelo sal compartilhava sua rotina. Metade da vida passava em alto-mar, numa plataforma de petróleo: quatorze dias seguidos cercado de ferro, máquinas e oceano. Contou sobre as ondas de até doze metros que sacudiam a P-34, da Petrobras, e como os colegas precisavam de remédios contra o enjoo nos primeiros dias. O retorno ao continente, de helicóptero, parecia uma cena de ressaca coletiva: desciam trôpegos, como bêbados. “É uma labirintite com hora marcada”, explicou. Depois vinham outros quatorze dias em terra, tentando recompor o convívio com a família. Seus olhos cansados refletiam um misto de orgulho e solidão. “É uma vida de extremos”, disse em tom mais baixo. “Ouço o mar até em casa. Voltaria sem hesitar se me chamassem”, completou, lembrando que deixou a profissão para seguir outro caminho.

Por volta das oito da manhã, o comissário iniciava seu ritual. Não sei se sempre nesse horário — no meu vagão, o de número 13, ele só chegou depois das nove. Empurrava um carrinho recheado de pastéis dourados, pães de queijo, lanches, café fumegante, garrafinhas de água e refrigerante. O aroma irresistível de café fresco tomava o ar. Foi então que duas mocinhas sentadas atrás de nós, até então discretas e contidas, viram sua timidez se dissolver. Riram baixinho, trocaram comentários sobre a faculdade e sobre qual lanche escolher, e pela primeira vez a juventude delas pareceu invadir o vagão com uma centelha de vida.

Aproveitamos a passagem do comissário para fazer a reserva do almoço. Entre as opções típicas, escolhemos estrogonofe e feijão tropeiro — pratos simples, mas saborosos, tão mineiros quanto o pão de queijo. Era curioso pensar como aquela estrada de ferro carregava não só pessoas e histórias, mas também os sabores e temperos de uma terra. Almoçamos no assento — mais prático, já que o serviço de bordo atendia ali mesmo — outros preferiam o vagão-restaurante. No sábado, a tela multimídia exibia a comédia "Meu Malvado Favorito II". O burburinho era grande. Famílias em grupos conversavam alto após a refeição e riam muito, sem se importar se os outros ouviam ou não — uma celebração barulhenta e coletiva do momento. Eu, dividido entre mundos, lia um jornal de Vitória, avançava algumas páginas do livro "Prosa, Poesia na Praça", lançado na semana anterior em BH no projeto Livro de Graça na Praça, e acompanhava notícias pela internet. As treze horas que de longe de parecerem eternidade, deslizavam com suavidade surpreendente.

Ficou na memória, na viagem de ida, enquanto esperava um café no vagão-restaurante, o vaivém coreografado do comissário e seu carrinho continuava, trilha sonora prática da viagem. Um senhor — que dividia a mesa conosco — de fala pausada, nos contou a história que o acompanhava como sombra. A esposa, com quem partilhara décadas, lutava contra o Alzheimer. A doença começara pouco depois da perda da filha mais velha, vítima de câncer no cérebro aos quarenta anos. “Ela nunca mais foi a mesma depois disso”, confidenciou, olhando para a xícara de café vazia como se buscasse respostas no fundo escuro. Sua voz oscilava entre a ternura da lembrança e a dor que não cicatriza.

Assim, entre a gargalhada de uma criança, a resignação de um trabalhador do mar, a timidez desfeita de duas jovens, o vai e vem incessante do carrinho de lanches, o ruído das famílias e a dor silenciosa de um homem, as horas foram passando. O trem, com seus vagões tão diferentes, era um microcosmo da vida: um emaranhado de histórias cruzadas, cada qual com seu peso e sua leveza peculiares.

Por acaso da vida, no fim da viagem descobri que o pai daquela criança — lá do início da história — tinha fortes vínculos com Patrocínio. A mãe dele é patrocinense, da família Soares, e foi ele quem intermediou a negociação do terreno do Colégio das Irmãs, primeiro para o Hipermercado Bretas e, mais tarde, para o Supermercado BH. Antes disso, já havia conduzido a venda da chamada “Praça dos Amigos”, que acabou barrada na Justiça.

Quando as luzes de Belo Horizonte começaram a riscar o céu noturno, percebi que a jornada chegava ao fim. Era minha primeira experiência em um trem de passageiros desde o fim dos anos 1960, quando eu ainda era criança e viajava com a família em condições bem mais austeras. Agora, o conforto era outro, mas a magia — a de ver o mundo passar pela janela, acompanhar paisagens diversas e compartilhar por algumas horas uma comunidade efêmera de histórias — permanecia intacta. Talvez até mais intensa.

As histórias colhidas nesses dias — essas — continuariam ecoando em mim, muito além dos trilhos. E, sem dúvida, valeu cada minuto da viagem.

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