'Meeiros' é um retrato da precariedade da vida das famílias cacaueiras no sul da Bahia sob o domínio de multinacionais

Os meeiros do cacau, como Demerval, são os principais atores da produção do cacau no Brasil, mas os que menos são valorizados dentro da cadeia produtiva - Vitor Shimomura e Pedro Stropasolas

Do Brasil de Fato

Por trás das intrigas de coronéis e as aventuras do amor entre José Inocêncio e Maria Santa em Renascer, renomada novela da Globo lançada na última semana, há um mundo de violações trabalhistas não retratado. E o pior: sustentado por multinacionais que lucram bilhões com a produção do chocolate no Brasil.

Produzido pelo Brasil de Fato, o documentário Meeiros, dos repórteres Pedro Stropasolas e Vitor Shimomura, lançado nesta quinta-feira (1), às 10h, mostra as precárias condições de vida das famílias rurais que produzem o cacau para a comercialização do produto como commodity agrícola. E traz luz a uma realidade agravante: a estrutura da cadeia produtiva é sustentada mundialmente por uma lógica desumana e imoral, onde a escravidão contemporânea e o trabalho infantil são práticas comuns nas zonas de cultivo.

A família produtora de cacau é o principal ator nessa cadeia produtiva e, ao mesmo tempo, é a principal vítima de um processo desumano. A situação é muito grave”, conta Vitor Shimomura, um dos diretores.

Por trás da produção do cacau há enorme rastro de pobreza e desigualdade. É isso que o documentário Meeiros aborda. A riqueza do cacau e do chocolate não chega às famílias produtoras. Se paga muito mal pelo cacau e as famílias não têm condições de qualificar sua produção a ponto de escapar da relação predatória com as moageiras e atravessadores”, completa Shimomura.

A crise do cacau

Na região sul da Bahia, o colapso socioeconômico provocado pela incidência do fungo Vassoura-de-Bruxa nas áreas de cultivo, a partir de 1989, impôs uma nova configuração das relações de trabalho na cadeia produtiva. Para manterem as terras, muitos produtores entregaram as fazendas devastadas pela praga para o zelo dos meeiros do cacau, por meio de contratos de parceria agrícola.

Quem menos sentiu a crise foram as multinacionais que controlam a cadeia produtiva de cacau e chocolate. Pelo contrário, elas ampliaram seu domínio sobre a produção mundial no período.

Da década de 1980 até os dias atuais, segundo um relatório de análise situacional produzido pela ONG Papel Social e lançado pela Organização Internacional do Trabalho e pelo Ministério Público do Trabalho, em 2018, o percentual do valor de uma barra de chocolate que permanece com o trabalhador rural foi reduzido em 62%.

Esse dado mostra o papel do oligopólio estrangeiro para agravar a pobreza na Bahia e no Pará, estados que respondem por 90% da produção de cacau brasileiro.

Meeiros fala sobre a cadeia do cacau, mas é um retrato de como se estrutura a produção de commodities dentro do agronegócio brasileiro. Um modelo colonial, e altamente dependente do capital estrangeiro”, analisa Pedro Stropasolas, que também assina a direção.

A cadeia produtiva

Barry Callebaut, Cargill e Olam Brasil processam em Ilhéus (BA) mais de 90% do cacau produzido no país / Pedro Stropasolas e Vitor Shimomura

São três as moageiras estrangeiras que dominam o mercado de processamento da amêndoa do cacau: a belga Barry Callebaut, a cingapuriana Olam Cocoa e a norte-americana Cargill. As três multinacionais processam em Ilhéus (BA) mais de 90% do cacau produzido no país.

Das moageiras, é produzido a manteiga e o pó de cacau, matérias-primas para a confecção do chocolate pelas grandes marcas do varejo. Também estrangeiras, Nestlé e Mondelez dominam esse mercado, e são responsáveis por dois terços do chocolate consumido pela população brasileira.

O cacau colhido pelos meeiros chega às três moageiras por meio de atravessadores. Essa comercialização não é monitorada, e as vendas, em boa parte dos casos, ocorrem de modo informal. É neste cenário de pouca fiscalização, em áreas rurais esquecidas da Costa do Cacau, onde as violações trabalhistas ocorrem, e onde as gravações de Meeiros foram feitas.

O enredo do documentário tem como eixo central a história de três famílias de trabalhadores rurais que vivem em Ilhéus e Uruçuca. No período de gravação, no início de 2018, ano de seca e baixa colheita, as famílias de Dermeval, Robério e Biro não conseguiam alcançar um salário mínimo mensal para o sustento familiar.

O preço pago pelos intermediários é tão baixo que as famílias não conseguem pagar as contas no fim do mês. Na prática, o que vemos é que o contrato de meação ou parceria é usado para maquiar a relação de exploração e violações de direitos”, pontua Vitor Shimomura.

Robério e família: dupla jornada como meeiro no cacau e na seringa não são suficientes para uma renda maior que um salário mínimo mensal / Pedro Stropasolas e Vitor Shimomura

Lucros e receita em meio ao trabalho escravo e infantil

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de 8 mil crianças e adolescentes brasileiras trabalham nas zonas de cultivo do cacau.

Além disso, ao menos 148 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo em fazendas de cacau nos últimos 15 anos, segundo levantamento da Repórter Brasil. A ampla maioria destes trabalhadores eram meeiros do cacau.

Enquanto isso no mundo dos negócios, a Nestlê teve um lucro operacional de 7,9 bilhões de francos suíços somente no primeiro semestre de 2023. Já o lucro líquido da Cargill em 2022, somente em suas operações no Brasil, foi de R$1,2 bilhão, segundo anúncio da própria empresa.

Meeiro por anos, Biro hoje conseguiu ser fichado, mas vive com a família em uma antiga fazenda sem energia elétrica / Pedro Stropasolas e Vitor Shimomura

Em 2023, a Cargill, que possui em Ilhéus (BA) sua maior unidade de moagem do cacau da América Latina, foi condenada por permitir o trabalho infantil e a escravização de crianças na produção cacaueira em cidades da Bahia.

Nada é feito de concreto para mudar este cenário. A cadeia produtiva do cacau, na forma como está estruturada, é confortável para quem está no topo. Não há qualquer interesse em monitorar as condições de trabalho de quem colhe o cacau usado para produzir o chocolate”, finaliza Pedro Stropasolas, um dos diretores de Meeiros.


Fonte: Brasil de Fato


Todas as notícias