regime de exceção que durou 21 anos; análise inédita detalha mortes e desaparecimentos políticos nas ditaduras deste 1946 e 1988, expondo padrões de violência do regime



Passadas seis décadas, o Brasil ainda convive com os resquícios da ditadura. A violência policial, a concentração de renda, a desigualdade social e a criminalização dos movimentos sociais são heranças desse período sombrio. - Foto: Evandro Teixeira

Da Redação da Rede Hoje

Há 61 anos, tanques militares ocupavam as ruas brasileiras, marcando o início de um dos períodos mais sombrios da história nacional. O golpe de 31 de março de 1964 foi uma ruptura institucional e o começo de uma ditadura que deixaria marcas profundas na sociedade.

A democracia, ainda frágil, foi substituída por um regime de exceção que durou 21 anos. Censura, perseguição política, tortura e assassinatos tornaram-se práticas sistemáticas do Estado. Hoje, seis décadas depois, o país ainda luta para enfrentar esse legado.

A justificativa dos golpistas era combater uma suposta "ameaça comunista". Na realidade, o que se viu foi a consolidação de um projeto autoritário, alinhado a interesses econômicos e geopolíticos. A Constituição de 1946 foi rasgada, e os direitos fundamentais, suspensos.

RESUMO HISTÓRICO

O golpe militar de 31 de março a 1.º de abril de 1964, pondo fim à Quarta República (1946–1964) e iniciando a ditadura militar brasileira (1964–1985), derrubou o presidente João Goulart, encerrando um período democrático e instaurando um regime autoritário que duraria 21 anos. A ação começou com uma rebelião militar, seguida pela declaração de vacância presidencial pelo Congresso em 2 de abril e pela formação de uma junta militar. Goulart foi exilado em 4 de abril, sendo substituído interinamente pelo presidente da Câmara Ranieri Mazzilli até a eleição do general Castelo Branco, um dos líderes do golpe, pelo Congresso.

Goulart, eleito vice-presidente em 1960, assumiu após a renúncia de Jânio Quadros em 1961, superando resistências militares na Campanha da Legalidade. Seu governo, marcado por crise econômica e propostas de reformas sociais (as "reformas de base"), enfrentou forte oposição de elites, classe média, setores militares, Igreja e imprensa, que o acusavam de comunismo e desordem. Com o apoio dos EUA aos opositores e sem conseguir aprovar suas reformas no Congresso, Goulart viu a crise política chegar ao ápice em março de 1964, culminando no golpe que o depôs.

PESQUISA SOBRE AS VÍTIMAS

Um estudo inédito do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) traz dados detalhados sobre os mortos e desaparecidos políticos entre 1946 e 1988. O levantamento, baseado no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, analisou 434 casos reconhecidos como crimes de Estado.

Luciana Félix, coordenadora do MDHC, enfatiza que os números representam vidas interrompidas. "Não são estatísticas frias, são pessoas que tiveram seus futuros roubados por um regime violento", afirma. A pesquisa mostra que a repressão política já existia antes do golpe, com 12 mortes registradas no período democrático.

Entre 1964 e 1968, quando a ditadura consolidava seu aparato repressivo, 51 pessoas foram assassinadas. O período mais sangrento veio após o AI-5 (1969-1978), com 351 vítimas. Mesmo na fase de abertura política (1979-1985), a violência persistiu, deixando mais 20 mortos.

FILIAÇÃO POLÍTICA

A maioria das vítimas (82,5%) tinha ligação com organizações políticas. Partidos de esquerda foram os mais atingidos: PCdoB (79 mortos), ALN (60) e PCB (41). A Guerrilha do Araguaia, organizada pelo PCdoB, foi responsável por dezenas de baixas entre militantes e camponeses.

PERFIL DAS VÍTIMAS


A publicação considerou os 434 casos de pessoas vitimadas pelo Estado brasileiro no contexto de ditadura do período de 1946 a 1988. Foto: MDH

A idade média era de 32,8 anos, com quase metade (49,3%) entre 18 e 29 anos. Crianças e adolescentes também foram atingidos: cinco tinham entre 12 e 17 anos, e uma bebê de menos de um ano foi morta. Estudantes (32,3%) e operários (13,1%) formavam os grupos mais vulneráveis.

Caio Cateb, da Comissão de Mortos e Desaparecidos, lembra que o movimento estudantil era um alvo prioritário. "A UNE liderava lutas por reformas e pagou um preço alto por isso", diz. Militares dissidentes também foram perseguidos: 27 vítimas tinham ligação com as Forças Armadas.

GÊNERO

As mulheres representaram 11,8% do total (51 vítimas). No final da ditadura, esse percentual subiu para 25%. Elas eram mais jovens que os homens: 68,7% tinham até 29 anos, contra 48,3% entre eles.

TERRITÓRIO DA REPRESSÃO

As capitais concentraram 62,7% das mortes, com São Paulo e Rio respondendo por 47,2% dos casos. A Guerrilha do Araguaia, espalhada por Pará, Tocantins e Maranhão, deixou 70 vítimas. No exterior, 28 brasileiros foram mortos ou desapareceram, principalmente na Argentina e no Chile.

OBSERVADH E MEMÓRIA

O Observatório Nacional de Direitos Humanos (ObservaDH) reuniu essas informações para subsidiar políticas públicas. A plataforma também monitora violações contra grupos vulneráveis, como LGBTQIA+, indígenas e negros.

A Comissão de Mortos e Desaparecidos, criada em 1995, continua ativa. Financiada por familiares de vítimas, ela busca localizar restos mortais e garantir reparações. "É uma dívida histórica que o Estado precisa saldar", afirma Cateb.

EDUCAÇÃO: A PRIMEIRA VÍTIMA

A educação foi uma das primeiras vítimas do regime. Escolas e universidades foram alvo de intervenções, professores foram perseguidos, e os currículos foram alterados para servir à propaganda do governo. A ditadura entendia que controlar o conhecimento era essencial para manter o poder.

Ao mesmo tempo, a falta de uma educação crítica e emancipatória contribuiu para que muitas pessoas não compreendessem a gravidade do que estava ocorrendo. A ausência de uma educação originária, que valorizasse a história, a cultura e os direitos humanos, deixou o terreno fértil para a aceitação passiva do autoritarismo.

NOMES DE LOGRADOUROS

Enquanto o país tenta reparar as vítimas, ruas e avenidas ainda homenageiam figuras do regime. Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura, dá nome a vias públicas em diversas cidades. Movimentos sociais denunciam a incoerência de manter essas homenagens em um Estado democrático.

REPERCUSSÃO POLÍTICA

O presidente Lula usou as redes sociais para marcar a data. "Democracia se defende todo dia", escreveu, em referência às ameaças recentes ao sistema eleitoral. A postagem ocorre dias após Bolsonaro se tornar réu por tentativa de golpe em 2022.

O STF também se manifestou: "Lembrar para nunca mais repetir". A corte destacou a importância da Constituição de 1988 na reconstrução democrática. Há 40 anos, o Brasil iniciava sua transição com a posse de Sarney, após a morte de Tancredo Neves.

DESAFIOS ATUAIS

Especialistas alertam que a democracia brasileira ainda é frágil. Projetos de lei que restringem manifestações e revisam a Lei de Anistia preocupam organizações de direitos humanos.

Para historiadores, o país precisa enfrentar seu passado para consolidar seu futuro. "Sem verdade e justiça, a democracia segue incompleta", conclui Luciana Félix. O estudo completo está disponível no portal ObservaDH.


Fontes usadas pela Rede Hoje nesta reportagem: TVT News, CNN Brasil, Brasil de Fato.


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