O livro de bolso Coyote
Crescer nos anos 1960 e 1970 foi viver em um tempo em que o Brasil, assim como a América Latina, estava marcado pela tensão das ditaduras militares. Enquanto o país se agita com os movimentos estudantis e a efervescência cultural, a minha vida, como adolescente, também se desenrolava sob o peso dessa realidade, mas com algo mais: um profundo fascínio pelas palavras, que começava a se formar dentro de mim, nos pequenos momentos do dia a dia.
Não havia internet. As notícias, as histórias e as inspirações vinham de fontes mais tradicionais. O cinema, especialmente o italiano e o americano, tinha o poder de nos transportar para mundos imaginários, cheios de aventuras e mistérios. As músicas, que preenchiam nossas tardes e noites, falavam de liberdade, de angústia e de esperança. Mas foi naquelas páginas amareladas de livros e jornais que as letras começaram a tomar forma na minha vida.
Meu pai, Júlio Costa, trabalhava na ferrovia, na Rede Mineira de Viação (RMV), que mais tarde se transformaria na Rede Ferroviária Federal (RFFSA), hoje VLi. A vida dele foi marcada por trajetórias complicadas e imprevisíveis. Era guarda-freios, mas um acidente na ferrovia mudou tudo. Após o tratamento prolongado no Hospital Raul Soares, em Belo Horizonte, devido àquela queda que lhe provocou um colapso mental. Durante o tratamento, ele foi atendido no primeiro ambulatório psiquiátrico de alta da década de 60, uma iniciativa ousada e inovadora para a época. Com isso, ele deixou de atuar nos trens e se transformou em telegrafista. Depois, foi transferido para os Correios, onde se aposentou precocemente.
E foi nos Correios, mais precisamente na agência de Patrocínio, que o destino me fez encontrar o que viria a ser um dos marcos mais importantes da minha juventude: uma biblioteca que pertencia a um amigo de meu pai, Deiro Araújo, pai do Daniel Araújo. Deiro tinha uma coleção imensa de livros e, por algum motivo que nunca entendi completamente, decidiu se desfazer de parte desse acervo. Ele vendeu, a preço de amigo, três estantes com a coleção completa da série "Coyote", escrita pelo espanhol José Mallorquí.
Jornal da Manhã, diário carioca de 1969
Para um garoto de 10 ou 12 anos, a ideia de ter em mãos um conjunto de romances de folhetim, com suas tramas cheias de mistérios, heróis destemidos e vilões de tirar o fôlego, era como receber um tesouro. Aquelas histórias de faroeste, com personagens cativantes e cenas eletrizantes, marcaram minha entrada no mundo das letras. O "Coyote", uma espécie de “Zorro”, com seus episódios cativantes e sua narrativa envolvente, acendeu em mim uma paixão que, até hoje, não se apagou.
Mas o "Coyote" não foi o único responsável pela minha imersão no universo literário. Lembro com clareza dos jornais que chegavam todos os dias em minha casa, uma herança do trabalho de meu pai como carteiro. O Estado de Minas (MG), o Correio da Manhã (RJ), e o Estado de São Paulo (SP) traziam não apenas notícias e artigos, mas também uma seção que me encantava: os cadernos esportivos e tirinhas como "Cisco Kid". Era ali que eu mergulhava nas histórias dos atletas, nas análises das partidas, e sentia uma conexão íntima com as palavras. De alguma forma, cada crônica e cada reportagem se tornaram um novo capítulo da minha própria formação literária.
"Tirinha Cisco Kid"
A literatura não entrou na minha vida de maneira suave. Ela veio em forma de revistas e livros de bolso, em histórias populares e nos relatos jornalísticos que me ensinavam mais do que apenas fatos: me ensinavam a importância da narrativa, da construção das palavras, e, acima de tudo, do poder de uma boa história.
Era um tempo sem pressa, sem as distrações digitais de hoje, mas um tempo em que as palavras tinham um valor inestimável. As histórias de Coyote, os relatos esportivos e as notícias que meu pai trazia para casa eram o combustível que alimentava minha imaginação e alimentava o meu desejo de entender o mundo a partir das letras.
O que me fascinava não era apenas o conteúdo das histórias, mas o seu poder de transformação. Eu era um jovem imerso em uma época turbulenta, mas encontrava, nas letras, uma forma de escapar, de entender e de sonhar. E foi assim, entre livros de bolso, jornais e romances policiais, que nasceu em mim uma paixão que se manteria viva por toda a vida.
Essas foram as minhas primeiras influências literárias, os primeiros passos na jornada de entender o que as palavras poderiam fazer por mim e pelo mundo ao meu redor. E talvez, se tivesse que apontar o momento que tudo começou, diria que ele se deu ali, naqueles livros de "Coyote" – que só pelas capas, já me encantavam - e nos cadernos esportivos que meu pai trazia para casa todos os dias. Ainda hoje, numa outra crônica, vou falar da série Coyote. Assim, você entenderá mais um pouco da paixão que me move.