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Acho que toda criança tem algum idoso como referência. Eu sempre gostei muito de um tio-avô, solteirão, acho que na casa dos 70 anos. Seu nome: José Luiz da Costa. Era um homem fantástico. É o mínimo que posso dizer. Lavrador, analfabeto, mas nunca vi alguém com tamanho conhecimento a respeito das relações humanas. Que sabedoria!
Entre os melhores momentos da infância, posso assegurar que passei muitos com o Tizé (assim que o chamava). Irmão da minha avó paterna, Sebastiana Luíza da Costa, aquele homem branquelo, cabelos brancos como algodão em ponto de colheita, altura mediana, magro e sensível, foi a pessoa mais tolerante que conheci.
O Tizé foi trabalhar no sítio que meu pai comprara — atrás da Serra do Cruzeiro, onde funciona atualmente do lixão. Lá é um lugar de puro cascalho, capim, árvores pequenas e retorcidas, só dois filetes de terra agricultável perto de duas capoeiras ao lado de dois córregos que passam dentro do que era a propriedade. Ao lado de um dos córregos, meu pai construiu a casa e um barracão.
Perto da casa, meu pai plantou cana pra moer para o gado — umas 20 rezes, se tanto — e minha mãe fez uma bela horta. Só ali, naqueles pouco mais de 500 metros quadrados, se produzia alguma coisa.
Então, meu pai contratou o Tizé para roçar o pasto (cortar as ervas daninhas, vassourinhas, mata-pasto, etc). No período de férias do grupo João Beraldo, o Tizé me convidou para fazer-lhe companhia, o que aceitei com muito gosto, pois adorava ouvir suas histórias.
A gente ia cedo. Sete da manhã já estávamos lá. É muito perto da cidade. Uma manhã, quando chegamos, o Tizé pediu que eu cortasse um pouco de capim — muito comum no lugar, parecido com o que se usava para encher colchões — e amontoá-lo embaixo de uma árvore. Se saber a razão, segui o que ele determinara, enquanto cortava umas varas. Depois ele montou uma armação usando duas pequenas árvores que ficavam lado a lado. Passou uma vara mais forte entre as forquilhas delas e foi trançando as varas até chegar ao chão. Colocou capim em cima, fazendo amarração com as cascas das próprias varas, que saíam como correias. Assim, fez uma cabana rústicas.
— Pra que isso, tio?, eu quis saber.
— Pra nos proteger da chuva que vem vindo — o céu negro anunciava uma tempestade.
— Mas nós trouxemos capas. — eu disse
— Verdade, mas se chover pedras estaremos protegidos. — retrucou.
Ouvi calado. E não é que ele tinha razão? Mas começou a trabalhar, caiu uma chuva daquelas. E o danado do abrigo aguentou o tranco.
Enquanto chovia, ele preparava um cigarro de fumo de rolo e palha de milho, que chamava de “pito de páia”.
E tinha todo um cerimonial. Primeiro passava o canivete — grande, cor prata — na palha, até ficar lisa como papel. Colocava a palha entre os dedos indicador (o fura bolo) e anelar (o seu vizinho), por cima do dedo médio (o pai de todos); pegava o fumo com o polegar e o indicador e cortava bem fininho, uma porção generosa. Depois, espalhava o fumo na palha, misturado com raspa de uma raiz (não sei acho que era de mama-cadela, só sei que ficava parecido com incenso); enrolava e dava uma lambida na palha (como se fazia com envelope), fechava, dobrava as pontas (pro fumo não cair). Pronto e perfeito! O famoso “pito de páia” estava pronto para ser reduzido à fumaça e à cinza, literalmente.
Mas a cerimônia não tinha acabado. Para acender o “pito”, o Tizé usava uma binga (isqueiro) que parecia uma bala de fuzil, cor de cobre. Dentro um chumaço de algodão. Ele tirava um pedaço de lima — que usava para amolar a foice — batia aquelou peça de metal numa pedra preta que segurava ao mesmo tempo na boca da binga, provocando faíscas e soprava o algodão até que, como mágica, o fogo aparecia.
O Tizé bebia um pouco de café muito doce e frio, que trazia numa garrafinha de guaraná caçula “Banho de Lua”, sentava-se de cócoras nos calcanhares e das boas baforadas naquele cigarro cheiroso e convidativo. De vez em quando, com a unha do solecar, dava umas três batidas na ponta do pito para “avivar” a brasa.
O dia passa e a gente se prepara para ir embora. Quando começamos a caminhada de volta, vejo uma cena que me impressionou muito: uma cobra enrolada numa coruja, tentando mordê-la e a ave pisando na cabeça da cobra, bicando e comendo e comendo aquele animal peçonhento, vivo.
Eu, impressionado:
— Tizé é a coruja que tá comendo a cobra, eu nunca tinha visto isso!
— Calma, filho. — ensinou-me — essa é a “coruja-buraqueira” que vive nos buracos abandonados por tatu e serve de tocas para outros animais e a cobra é dos alimentos da coruja. A natureza é assim, o que caça num dia, pode ser caçado no outro.
Sem que nenhum de nós — pelo menos eu — percebesse, mais que falar da rotina de dois animais silvestres, ele acabara de me dar uma lição de vida.
O Tizé morreu no início da década de 1970. Só lamento não ter convido mais com ele, pois era generoso, doce, de fala mansa e de grande sabedoria. Aquilo tudo me fascinava. Nunca vi aquele homem com atitude de confronto, arrogante, com quem ou o que quer que fosse. Se dizer uma palavra sobre qualquer assunto, contudo, com seu jeitou de viver, era como se em cada ato me ensinasse: “Seja tolerante e manso com as pessoas e com toda criatura de Deus. Isso será bom para você mesmo”. Aquilo me valeu até hoje. Tento viver da mesma forma, valorizando o que é simples, sem arrogância e respeitando o outro, por mais humilde que pareça.
Nota. Esta crônica está no meu primeiro livro de crônicas “O Som da Memória”, publicado há 10 anos, em 2012, com o apoio do então secretário de Cultura, Flávio Arvelos. Saiu com o título “Tio Zé e o pito de ‘paia’”. Falo nisso porque o lançamento do meu livro mais recente está previsto para dia 2 de julho. É o livro reportagem “CAP: A História de uma Paixão Grená”. Mas, o primeiro livro é sempre o que marca mais.
Dedico-a ao produtor rural, já falecido, Paulo Pereira. Certa vez o encontrei com seus irmãos num restaurante e ele disse que essa era a sua crônica preferida do meu livro, pois, na fazenda de seu pai tinha um senhor com as mesmas caraterísticas do Tio Zé.