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Luiz Antônio Costa | O Som da Memória | Um operário

O sol ainda não havia decidido se castigaria o dia com força total quando ele cruzou a rua, passo miúdo, como quem sabe que o chão pode ceder a qualquer instante. Levava consigo uma garrafa (pet) de café meio frio e um pedaço de pão embalado em guardanapo de papel – o café era amargo, o pão, duro, mas ele mastigava como se fosse banquete. Tinha nas mãos calos que contavam histórias de paredes erguidas, cimento queimando a pele, horas a fio sob um calor que nem sempre era só do sol.

Subiu no andaime como quem sobe num altar. Cada tijolo que assentava era um verso num poema que ninguém lia, mas todos habitavam. O suor escorria, misturava-se ao pó branco que grudava em seus cílios – pareciam pequenas esculturas de gesso, frágeis e pesadas ao mesmo tempo. Quando o apito do meio-dia soou, sentou-se na beirada da laje, pernas balançando no vão, e abriu a marmita. Feijão, arroz, um osso com resto de carne. Comeu devagar, como se aquele fosse seu último prato.

No fim do expediente, desceu cambaleando, não de bebida, mas de cansaço. Parou na vendinha da esquina, tomou uma cachaça barata que ardia na garganta e afogava, por alguns segundos, a poeira dos pulmões. Riu de uma piada sem graça do colega, gargalhou como se fosse a última risada que lhe coubesse no peito.

Ao atravessar a rua de volta, olhou para o prédio que ajudara a levantar. Era alto, imponente, cheio de janelas que refletiam o céu. Nunca moraria ali. Seguiu em frente, passo vacilante, até que um desequilíbrio – um buraco na calçada? um tijolo solto na memória? – o fez tropeçar. Caiu. Não voou, não flutuou, apenas dobrou-se sobre si mesmo, pacote de ossos e fadiga.

O trânsito buzinou. Alguém gritou. O mundo seguiu, porque o mundo é uma obra em construção, e serventes de pedreiros são peças que se trocam.

*Esta crônica foi baseada na canção "Construção", de Chico Buarque, onde o cotidiano do trabalhador se dissolve em poesia e tragédia, repetindo-se em versos que são ciclos – de amor, suor e queda. Como o personagem da música, este serventes de pedreiro amou, trabalhou, tropeçou e, por fim, tornou-se apenas um obstáculo no caminho de outros que seguem construindo.


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