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Luiz Antônio Costa 

Contos da Estrada – Um Bolero no Jardim de Isabel 

A estrada é feita de memórias. Umas são minhas, a maioria é de outros. Esta aqui, a primeira que compartilho, encontrei  num jornal velho, desses que meu pai trazia para casa. É sobre o peso do tempo, o eco de um Brasil que não pode ser esquecido e a solidão que silencia vozes inteiras. Vamos caminhar juntos por essa estrada.
O sol fraco do final de tarde tentava, sem muito sucesso, esquentar os bancos de madeira do jardim do asilo. Foi ali, sob a sombra raquítica de uma árvore, que a encontrei. A voz de um rádio distante, saindo de uma janela aberta, trazia "Rose Garden", uma canção de Lynn Anderson. E no centro daquele pequeno oásis de cimento e terra, os dedos de Dona Isabel tamborilavam suavemente no braço do banco, marcando um ritmo que só ela conhecia. Uma senhora de 109 anos, com uma lucidez que era um desafio ao tempo.
Isabel Porto Viana era uma das 657 almas daquele lugar. O jardim, com seus canteiros minguados e um caminho de pedra que levava a lugar nenhum, era o palco onde as histórias tentavam respirar um ar menos pesado. O vai-e-vem de um cuidador pelo caminho fez com que ela se encolhesse um pouco, mostrando um cansaço breve. Mas o fôlego voltou rápido, alimentado pela luz do dia e por uma vontade palpável de falar, de ser ouvida, de receber um pouco do afeto que a vida lhe negava.
A necessidade de carinho era tão clara quanto a luz que iluminava seu rosto. Dá para sentir na pele quando alguém tem uma história presa na garganta.
Eu sei costurá, mô fio. Ocê qué vê? — ela disse, piscando para o sol.
E sabia, sim. Mesmo com seus 109 anos, ali mesmo, no banco do jardim, os dedos finos fizeram o ar de agulha e linha. A cabeça, toda branca, abrigava uma mente afiada. A boca, um vai-e-vem de lembranças, soltava uma voz aguda que às vezes fraquejava, mas sempre se refazia para a próxima palavra. Era uma voz que pedia para ser escutada, ali, ao ar livre.
Vó Isabel nasceu em 1862. Dezesseis anos antes da Abolição. Ela falava com uma doçura especial da princesa Isabel, sua homônima, enquanto apontava para uma flor murcha no canteiro. Lembrava, a cada momento, “aquela santa da pena de ouro”. Sua vida toda foi na Fazenda Ballolins, e ela insistia na benevolência dos patrões. Mas a memória, quando cutucada, vai fundo.
Quando se insistia no assunto das torturas, ela lembrava que só iam para o tronco “os negros que desesperavam a mulher”. Aos poucos, a história verdadeira veio à tona, contada sob o céu aberto, como se as plantas também devessem ouvir. Com uma expressão que parecia amortecida pela dor, ela falou das chibatadas com armas e taquaras, dos negros atados em grilhões e lançados no rio. “Alguns conseguia sarvar, mas a maioria morria afogada.” Ela frisava, enfaticamente, que nunca apanhara.
Reclamava da comida do asilo. “é muito fraca, muito!” E com saudade do angu, da carne seca gorda e do feijão de outrora.
Você namorava, vó? Casou? — perguntei, enquanto uma folha seca caía perto de nós.
Eu não, mi santo. Naquele tempo era difíce casamento…
Ela adorava Roberto Carlos e devorava fotonovelas, mas torcia o nariz para as conversas com as outras idosas no jardim. “Aqui só se conversa bobage…” Preferia a companhia de seu próprio passado, ali, naquele banco.
Noutro canto do jardim, perto de um canteiro de ervas daninhas, Dona Jacinta Maria da Conceição recebia a visita de seu filho mais velho, o único que restava de quatro. Ela nascera no meio de 1888, “um dia de muita festa, mózinho.” – o ano da Abolição.
Sua história era outra faca. Contava, um pouco encabulada, que era filha do senhor da fazenda com uma escrava, Rosalina. Falava das “bainhas bonitas que caiam nas mãos dos filhos do senhor”: umas ganhavam um pedaço de terra, outras “apanhavam para se calar”.
Dos castigos, sua voz embargava, ecoando no jardim quieto: “mi mó fio, só Deus sabe… Se eu fór contar tudo, a tarde é pouca, a noite é pouca…” Contou que o patrão, “embora fosse bom comigo”, era duro com os que não sabiam se comportar. Amarravam os negros ao tronco e soltavam os cachorros bravios. Ou a chibatada durava “enquanto o patrão fumasse seu charuto”.
Vó, canta uma coisa do seu tempo para a gente esquecer essas tristezas, canta?... — pediu alguém.
Ela hesitou. Alegou que não tinha mais voz. Mas o jardim parecia pedir por algo belo. Ela acabou cedendo. Pigarreou, olhou para o céu e sussurrou:
O meu bolero… Que será de mim…
Em volta, no silêncio do jardim, outros idosos que aproveitavam o ar livre voltaram-se para ela. De bancos espalhados e cadeiras de rodas, surgiram sorrisos embebidos em lágrimas silenciosas, atentos e respeitosos, ouvindo a trilha sonora de uma vida que o tempo não apagou, ecoando entre as roseiras murchas.
E assim seguimos. Até a próxima estrada.


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