O medo de não serem pagos e a dependência financeira fizeram com que trabalhadores permanecessem no local em condições sub-humanas.
Crédito Foto: PMMG
Os trabalhadores em Serra do Salitre relataram que estavam sendo submetidos a condições análogas à escravidão, sem pagamento de salários, sem alimentação adequada e com alojamentos completamente insalubres
Da redação da Rede Hoje
Baseada em duas informações da Agência Local de Comunicação do 46 BPM que a Rede Hoje recebeu sobre trabalho escravo em Guimarânia e Serra do Salitre, resolvemos fazer um levantamento dos casos no ano no Alto Paraíba e no estado de Minas.
Apenas em 2024, até o final de agosto, 291 pessoas foram resgatadas no estado, quase metade do total de 593 trabalhadores encontrados em situação semelhante em todo o Brasil, segundo o Ministério do Trabalho, Emprego e Renda.
Semana passada em Serra do Salitre
Eles dormiam neste quarto
No dia 26 de setembro de 2024, três trabalhadores compareceram ao quartel da Polícia Militar em Serra do Salitre, no Alto Paranaíba, Minas Gerais, para denunciar as condições em que viviam e trabalhavam em uma carvoaria na zona rural da cidade. Os homens, com idades de 30, 33 e 36 anos, relataram que estavam sendo submetidos a condições análogas à escravidão, sem pagamento de salários, sem alimentação adequada e com alojamentos completamente insalubres. Eles descreveram jornadas exaustivas e a ausência de condições mínimas de higiene.
A Polícia Militar foi ao local e confirmou as denúncias. As condições de trabalho eram tão degradantes que os trabalhadores não tinham acesso sequer a alimentação suficiente ou água potável. Viviam em barracas improvisadas e eram forçados a permanecer na carvoaria contra a vontade, sob ameaças de não receberem o pouco que lhes era prometido. O proprietário da carvoaria, um homem de 42 anos, foi preso em flagrante e levado à Delegacia de Polícia Civil, marcando mais um triste episódio de exploração no estado de Minas Gerais.
Poucos dias antes em Guimarânia
Esse caso faz parte de um problema muito maior. No mesmo mês, dois outros trabalhadores foram resgatados em uma operação conjunta do Ministério Público do Trabalho (MPT), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em Guimarânia, também no Alto Paranaíba. As vítimas, oriundas de Montes Claros, estavam sendo submetidas a jornadas de até 14 horas diárias e viviam em barracas de lona sem acesso a água potável. Além disso, sofriam com a chamada "servidão por dívida", pois o patrão descontava irregularmente despesas com transporte e alimentação.
Situação do caso de Guimarânia não é diferente. Foto: PMMG
Esses trabalhadores, assim como os de Serra do Salitre, estavam sem registro formal de trabalho e há mais de 30 dias sem receber qualquer pagamento. O medo de não serem pagos e a dependência financeira fizeram com que eles permanecessem no local em condições sub-humanas. "Eles trabalhavam das 5h30 até as 18h, todos os dias da semana, sem descanso. As despesas com o transporte de Montes Claros até Guimarânia e até a alimentação seriam descontadas de seus salários", afirmou o procurador do Trabalho, Hermano Martins Domingues.
Esses episódios evidenciam o grave problema de trabalho análogo à escravidão em Minas Gerais, que lidera o ranking nacional de resgates de trabalhadores nessas condições. Apenas em 2024, até o final de agosto, 291 pessoas foram resgatadas no estado, quase metade do total de 593 trabalhadores encontrados em situação semelhante em todo o Brasil, segundo o Ministério do Trabalho, Emprego e Renda.
As carvoarias, fazendas de café e outras atividades rurais têm sido o principal foco dessas operações, mas o problema também se estende para setores como a construção civil e o trabalho doméstico. Em abril de 2024, a “lista suja” do governo federal, que traz os nomes de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão, foi atualizada com a inclusão de 248 novos nomes, o maior número já registrado desde que o cadastro foi criado. Atualmente, a lista conta com 654 nomes de pessoas físicas e jurídicas envolvidas nesse tipo de crime.
Patrocínio e mais 11 cidades da região
A geladeira mostra que, em Serra do Salitre, não havia nada além de água. Foto: PMMG
Entre os empregadores adicionados à "lista suja" do Ministério do Trabalho, 16 são do setor de produção de carvão, como nos casos de Serra do Salitre e Guimarânia. As cidades de Abadia dos Dourados, Araxá, Coromandel, João Pinheiro, Lagoa Formosa, Paracatu, Patos de Minas, Patrocínio, Perdizes, Prata, Presidente Olegário e Sacramento, todas no Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba e Noroeste de Minas, estão entre as que mais registraram ocorrências desse tipo de crime.
Os trabalhadores encontrados nessas condições frequentemente são oriundos de regiões mais pobres do Brasil, como o Maranhão e o Norte de Minas Gerais. Eles são atraídos por promessas de salários e condições dignas, mas acabam se tornando vítimas de exploração e vivendo sob condições miseráveis. Muitos relatam que, além das longas jornadas e da falta de pagamento, sofrem ameaças e coação para continuarem trabalhando, temendo represálias caso tentem escapar.
Autoridades se movimentam
As autoridades de Minas Gerais estão intensificando os esforços para combater esse problema. O superintendente regional do Trabalho, Carlos Calazans, anunciou que em outubro será lançado o Pacto pelo Trabalho Decente na Agricultura, uma campanha que visa ampliar a fiscalização e conscientização sobre os direitos trabalhistas. Além disso, ações de panfletagem em estradas e postos de transporte, junto com campanhas publicitárias e a atuação conjunta da Polícia Rodoviária Federal e da Polícia Militar, estão previstas para combater o transporte e a exploração ilegal de trabalhadores.
Ainda assim, o desafio é grande. "Minas Gerais lidera esse triste ranking de trabalho análogo à escravidão, e é preciso que toda a sociedade se mobilize para acabar com essa prática", enfatizou Calazans. A Superintendência Regional do Trabalho já indicou que continuará a realizar operações de fiscalização intensiva em áreas vulneráveis, e o Ministério Público do Trabalho segue atuando para garantir que os empregadores que cometem esses crimes sejam responsabilizados.
Em setembro do ano passado, o procurador-geral de Justiça de Minas Gerais, Jarbas Soares Júnior, se reuniu com o superintendente do Ministério do Trabalho e Emprego, Carlos Calazans, e as auditoras-fiscais do Trabalho, Juliana Vilela Marcondes e Cynthia Alves Saldanha. O encontro teve como objetivo discutir dados e estratégias para enfrentar o trabalho análogo à escravidão no estado. Embora a responsabilidade principal recaia sobre a Justiça do Trabalho, o procurador-geral ressaltou a importância da atuação do Ministério Público, que possui atribuições relacionadas a direitos humanos e fundamentais, podendo colaborar com outras instituições na responsabilização de crimes e irregularidades envolvendo trabalhadores.
Autoridades tem se movimentado. Foto: MPMG
Carlos Calazans destacou a necessidade de estabelecer parcerias para combater essa prática no estado, que abriga 40% dos trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão no Brasil. Ele enfatizou que muitos dos resgatados são mulheres, negros, pessoas com deficiência e crianças, o que torna a questão uma violação dos direitos humanos e da dignidade das pessoas. O fortalecimento da colaboração entre as instituições é visto como crucial para enfrentar esse grave problema social.
Casos como os de Serra do Salitre e Guimarânia mostram que, apesar dos avanços nas fiscalizações e na conscientização, o trabalho escravo continua sendo uma realidade dura e persistente em várias partes de Minas Gerais e do Brasil. As operações de resgate são fundamentais, mas o problema só será resolvido com a aplicação rigorosa das leis e o engajamento de toda a sociedade.