Resolução histórica busca corrigir causas de morte e garantir direitos às famílias; CNJ deu - em dezembro de 2024 - 30 dias aos cartórios para adequar documentos

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revista Cartório Com Você


Da Redação da Rede Hoje

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou em dezembro de 2024 uma resolução que altera significativamente o tratamento dado aos registros de óbito de vítimas da ditadura militar (1964-1985). A medida, considerada um marco na justiça de transição brasileira, determina a retificação obrigatória desses documentos para incluir a responsabilidade do Estado brasileiro nas mortes.

A decisão foi tomada durante a 16ª Sessão Ordinária do CNJ, realizada simbolicamente no Dia Internacional dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro. A resolução se baseia na Lei nº 9.140/1995, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas por motivos políticos entre 1961 e 1988, e na Lei nº 12.528/2011, que criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV). A informação saiu na reportagem assinada por Frederico Guimarães, na revista “Cartório Com Você” - numero 37, uma publicação da Anoreg/SP e Sinoreg/SP.

Dos 434 casos documentados pela CNV em seu relatório final, apenas 10 registros de óbito haviam sido retificados administrativamente até a publicação da nova norma. Agora, todos os cartórios de registro civil do país serão obrigados a incluir nos documentos a seguinte causa da morte: "não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964".

O presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, destacou o significado simbólico da medida. "Consideramos essa uma proposição simbolicamente muito importante, que nos ajuda a procurar não enterrar um passado porque nunca poderemos esquecer, mas em alguma medida aliviar a dor dos sobreviventes, das famílias que sofreram com a perseguição política", afirmou Barroso durante a sessão.

O processo de retificação será coordenado pelo Operador Nacional do Registro Civil (ON-RCPN), braço tecnológico da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). Os cartórios terão 30 dias para realizar as alterações após serem notificados. Nos casos em que não existir registro de óbito - comum em situações de desaparecimento -, o procedimento será feito no local do falecimento ou de domicílio do desaparecido.

Gustavo Renato Fiscarelli, ex-presidente da Arpen-Brasil e vice-presidente do ON-RCPN, explicou o impacto prático da resolução. "O assento de óbito dessas pessoas é o documento principal para que elas possam requerer esse pleito de indenização junto ao Estado brasileiro. A Resolução teve o objetivo de padronização procedimental desses óbitos e retificações, para que, de fato, a gente alcance a efetividade da lei em termos nacionais", disse Fiscarelli.

A ministra dos Direitos Humanos e Cidadania, Macaé Evaristo, presente na sessão do CNJ, celebrou a resolução como um avanço na reparação histórica. "A memória e a verdade são pilares fundamentais para uma sociedade comprometida com a justiça e os direitos humanos", destacou a ministra.

Um dos casos emblemáticos já beneficiados pela medida foi o do deputado federal Rubens Paiva, desaparecido em 1971. Sua certidão de óbito foi retificada em 23 de janeiro de 2025 pelo Cartório do 1º Subdistrito da Sé, em São Paulo, passando a constar explicitamente que sua morte foi "violenta, causada pelo Estado".
Geny de Jesus Macedo Morelli, oficial do cartório da Sé - SP. 

Geny de Jesus Macedo Morelli, oficial do cartório da Sé, relembrou o atendimento à família de Rubens Paiva. "Ela [Eunice Paiva, viúva] veio aqui no Cartório retirar a certidão. Combinamos uma data, porque estava muito em evidência na época. Ela foi atendida com toda a prioridade merecida, naturalmente", contou Morelli.

O juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, Fernando Chemin Cury, um dos responsáveis pela elaboração da resolução, enfatizou seu caráter reparatório. "Acredito que o CNJ, por meio dessa Resolução, dá um importante passo rumo à reparação dos danos causados às famílias que tiveram alguém vitimado por força de um regime ditatorial que, infelizmente, vigorou no país por certo tempo", afirmou Cury.

As novas certidões serão entregues gratuitamente às famílias pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), preferencialmente em cerimônias solenes. Para os documentos não reclamados, está prevista a criação de um acervo memorial em museus ou instituições dedicadas à preservação da memória desse período histórico.

A resolução estabelece ainda que, nos casos em que o local da morte seja incerto ou desconhecido, o registro deverá ser feito no cartório responsável pela certidão de nascimento do desaparecido. Todo o processo será isento de custos para as famílias, cabendo ao poder público arcar com as despesas.

Especialistas em justiça de transição avaliam que a medida, embora tardia, representa um avanço significativo no processo de reconhecimento oficial das violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar. A expectativa é que as retificações facilitem o acesso das famílias a reparações materiais e simbólicas.

O CNJ determinou que o ON-RCPN deverá apresentar relatórios periódicos sobre a implementação da resolução, garantindo a transparência do processo. A medida não tem efeito retroativo sobre processos judiciais já encerrados, mas pode servir como base para novas ações de reparação.

Com a publicação da resolução, o Brasil se alinha a práticas internacionais de justiça transicional, seguindo exemplos de países como Argentina e Chile, que também implementaram mecanismos semelhantes para lidar com o legado de suas ditaduras militares.


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